Envelhecera 10,
15, 20 anos, desde a última provocação: "Perverso!"
Com o ânimo de uma traça, ele carregava um sentimento sem
nome e sem cor desde a última vez que a vira, há muito tempo.
Andaram juntos por aí sem nominar a relação, sem horas para
os encontros e despedidas. Não carecia, ele pensava, de tão sinceramente
espontâneas: eram amigos, mais do que amigos, menos que namorados – às vezes
mais do que isso, mais do que tudo de bom acima desse chão.
Para ela, confessava todos os seus pecados, contava as suas
histórias, desfiava seus medos, abria um rombo em seu coração minado. Em troca
do ouvido atento e despretensioso, a tratava com gentilezas, dava-lhe
presentes, aconselhava, apresentava-lhe todo um mundo que ela jamais poderia
conhecer não fora a sua companhia. E se iam num vaivém de ternuras e afetos, despejando
sorrisos quase juvenis e cantando o amor febril, sem impor nas costas um do
outro nenhum peso de mentiras, falsas convenções ou pregar ilusões melosas ou
palavras desnecessárias, até o derradeiro dia quando, num heroísmo quixotesco,
para preservar aquela tão querida, a lhe confessar um súbito amor, concedeu-lhe
a liberdade: "Vai, é melhor, nem eu gosto de mim!"
Ela não engoliu isso e transfigurou-se. Acabou-se o encanto
e a boca antes suculenta do beijo falseou-se em mordida amara. Encerrada a
princípio numa implosão brutal, a questionar a relação entre céu e inferno, a
afogar-se no travesseiro, a escrever suas mágoas todas, a tatuar seu ódio no
corpo, a livrar-se de cada lembrança sua, como se fora possível embrulhar numa
caixa os seus mais arraigados sentimentos. Diante do seu fracasso, fez-se
invisível. Mas não era a única. Outra, de um passado anterior, também há anos
tentava colocar em ordem seus pensamentos e angústias, culpando aquele mesmo
homem por tudo de ruim que acontecera e que ainda aconteceria com ela, além do tempo
perdido, a unha encravada, uma dor no dente, os gastos com remédios e o barulho
no túnel carioca.
Elas se descobriram na internet – a primeira orbitava a segunda
– e, logo, também a primeira, em fúria, cuspia para ele: "Por que você não
morre logo?"
Entre elas, foi amor à primeira vista. Compartilhando suas
dores comuns, passaram a se corresponder, trocar ideias, confessar com uma
curiosa disposição o discurso consensual: "Perverso!" Certas de que
ele era um acidente, mas sendo possível sobreviver a ele, crucificaram-no,
torceram-lhe a perna e o juízo, desejaram-lhe todo o mal do mundo. A primeira
ainda se ria quando afirmava com toda ridícula certeza: "Nada não. O pior
castigo para ele é ser ele próprio..."
O rapaz, entretanto, trazia o defeito imperdoável da
sensibilidade. Sentiu naquele dia uma coisa ruim a tomar-lhe a cabeça.
Angustioso, pôs-se a pensar na febre a calcinar-lhe o espírito e, ao
analisar-se de raiz deu-se a conhecer um sentimento até então desconhecido: o
arrependimento!
Arrependeu-se por cada minuto devotado àquelas mulheres, de
cada beijo dado, cada abraço, cada minuto em suas companhias. Essa rejeição
pungente o devorou por dentro e acinzentou seu olhar. Em pouco tempo,
deixou-lhe no espírito um oco de labirintos, profundamente perdido numa
confusão louca de ruim e a certeza de que a mulher apaixonada é um perigo.
Livrai-o, Senhor, da mulher que lhe dedica a paixão...