Após horas de
entrevista com aqueles estudantes,
chegamos com algum atraso ao antigo Centro de Convenções, sede da Bienal
Internacional do Livro. Aliás, foi a última edição da Bienal a acontecer ali. Passamos
rapidamente pelo auditório montado para recebê-lo. Como imaginávamos, estava
lotado: eram crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos ansiosos em ver
de perto o Ziraldo, realmente um ídolo de diversas gerações.
Preparava-me para subir ao palco e chamá-lo quando deu-se um “embaraço
devastador”: Ziraldo estava agoniado com uma cutícula de unha: “Eu não vou
conseguir falar se eu não tirar isso!” Liguei para a produção: “Pelamordedeus
arranjem logo um alicate de unha para esse homem!” Dirigimo-nos à Sala VIP e
ali ficamos até ele resolver esse aparente gigantesco imbróglio...
O tema que escolhi para a sua
palestra, claro, não poderia ser diferente: “Ler é mais importante do que
estudar!”
Ziraldo chegou ao palco ao som
de palmas entusiasmadas e afetuosas. Muitos ali o tinham bem de perto, da
cabeceira, na voz materna, em momentos de divertidas solidões. Descumprindo
qualquer protocolo, falou abertamente com a naturalidade encantatória dos
loucos. Distribuía sem pudor as suas impressões do mundo, a sua visão sobre a
educação, sobre a leitura e as suas pequenas fascinações.
Ao final, uma fila interminável de pessoas trazia seus livros para
autografar. Ele atendeu a todos. Permaneci ao seu lado e, daí, mesmo enquanto
autografava, falava comigo. Precisava que eu conseguisse algum lugar com telão
para ele assistir ao jogo do Flamengo que aconteceria naquela noite: “Tenho que
terminar antes do jogo. Você gosta de futebol? assiste comigo?”
Na verdade, não mesmo. Contudo poderia recorrer novamente ao Mino.
Liguei para ele, pedi mais esse favor, e ele aceitou. Disse-me que aguardaria
por nós dois no restaurante Dallas, onde poderiam encontrar o tal
telão. Como o Mino não dirige, deixaria um motorista para ambos.
Resolvido isso, Ziraldo ainda me falou que soube que estávamos
distribuindo R$ 5,00 para que os estudantes comprassem livros na Bienal, a tal
“Notinha Legal”: “É um desserviço. Livro com esse valor não presta!” Por
coincidência (ou não), uma garota estava com um livro dele na mão e eu
perguntei quanto custou. Respondeu toda sorrisos: “Só R$ 5,00. Está em
promoção.” Ele baixou a cabeça, desenhou o autógrafo e resmungou: “Por isso é
que eu não ganho mais dinheiro. Só R$ 5,00...”
De repente, um homem surgiu por trás da fila e acenou-lhe com um livro,
mais um de seus títulos, na mão: “Ziraldo, você gostou da edição? Está bonita,
né?” Ziraldo mirou apertando os olhos: “Está... Mas eu não estou lembrado de a
gente ter acertado esse não, viu? Vamos ter que conversar...”
A fila parecia não ter fim e ele começou a se aperrear: “E o jogo? Vou
perder o jogo?” Sugeri: “Resume o autógrafo. Não desenha.” “É mesmo, né?”,
disse. Porém, logo depois, chegou uma mocinha. Perguntou o nome dela:
“Marília”. Então, rapidamente ele se pôs a desenhar ondas do mar, um barco, um
sol... É, não adiantava, ele amava tudo aquilo. Dava gosto ver a alegria
daquelas pessoas abraçando-o, pedindo-me para tirar fotos com ele, mães
trazendo filhos que, como ela, descobriram o Ziraldo ainda na infância. A sua
presença, nunca tive dúvidas, seria para esse povo cearense um presente
impagável.
À noite, conforme acordado, o deixei no Dallas com o
Mino e, antes de eu voltar para casa, perguntou se eu poderia ir com ele na
manhã do dia seguinte à Revistas & Cia, do Silvyo Amarante,
pois estava curioso em conhecer o espaço e queria fazer umas comprinhas...
Lembrou-me: “Eu não fico sozinho, Raymundo!”
***
O voo do Ziraldo partia
por volta do meio-dia e por isso, muito cedo, eu já estava no hotel para
pegá-lo e levá-lo à revistaria do Silvyo Amarante.
Durante
o percurso, ele ligava para alguém. Contava alguma piada breve sobre “chifre” e
outros temas curiosamente do gosto masculino e logo perguntava por que aquela
pessoa não havia ido ao aniversário da Márcia, a sua esposa: “Rapaz, liga para
Márcia, diz que estava doente, fala qualquer coisa, pois ela estranhou muito a sua
ausência. Sério, só faltou você! Liga pra ela, liga!” Até chegarmos à loja do
Silvyo – e depois que saímos de lá –, ele deve ter ligado para umas oito
pessoas dizendo e pedindo a mesma coisa: “Só faltou você, meu amigo, liga pra
ela, liga!”
Entre
uma ligação e outra, me perguntava qualquer coisa sobre a cidade, sobre um ou
outro artista e se indagava porque não tinha aceito participar de um evento no
qual teria sido convidado no passado: “Raymundo, você sabe que eu só aceitei
vir porque era no Ceará. Você está me pagando uma pechincha.” Respondi: “É
mesmo? E você sabe que você foi, entre todos, o último e o único artista com
quem negociei diretamente o cachê?” Deu uma risada: “Vejam só, negociei com a
pessoa errada!”
Finalmente,
chegamos.
O
Silvyo o recebeu com a alegria de sempre. Além de sofisticado colecionador de
revistas dos mais diversos gêneros, é inteligentíssimo e tem uma memória
privilegiada. Cinéfilo, excelente contador de histórias e piadas, jogador
compulsivo de frescobol, nas horas vagas se dá ao exercício de elaborar poemas
quase épicos, utilizando palavras que se iniciam com uma única letra, como a
obra “Mundografia Moderna”, cujo prefácio é de Chico Anysio, humorista que
utilizava os versos do Silvyo em algumas de suas apresentações em teatros ou na
TV.
Claro,
o Silvyo o conduziria a caminhar pelo fantástico labirinto de estantes e caixas
que é a sua “Fortaleza da Solidão”, apresentando não apenas as raríssimas
coleções de revistas, miniaturas e estatuetas de personagens de quadrinhos,
como também acervos de ilustrações de artistas nacionais e internacionais.
Entre eles, o nosso saudoso Al Rio.
Diante
de tantos nomes de peso, o Ziraldo não se fez de rogado e, num pedaço de
parede, deixou também rabiscado um seu Menino Maluquinho a saudar o grande
Silvyo que, aliás, também foi um dos palestrantes convidados naquela Bienal.
Ziraldo,
durante o “passeio”, ia pedindo uma coisa e outra, colhendo “flores daquele
jardim”. Depois, sentou-se na banqueta do Silvyo, na entrada da loja, atendeu
telefonemas, foi fotografado pelos clientes que o reconheceram, contou algumas
outras histórias e, depois, tomamos o rumo direto para o aeroporto. Entre as
aquisições, as Playboy da Xuxa e da Luiza Brunet: “Vou levar. Acredita
que eu nunca vi?”
No
aeroporto, o problema era: tinha que comprar qualquer coisa para colocar o
grande número de livros e revistas que ele havia ganhado e comprado. Não foi
fácil. “O aeroporto de vocês é muito pequenininho...” Mas conseguimos. Quando
na hora de guardar tudo na bolsa – “A Márcia não sabe mais o que fazer com
tanta bolsa” –, ele perguntou: “E você não escreve? Cadê os seus livros?” Não
tinha levado nada. Fiquei de enviar depois. Nunca o fiz. E assim nos
despedimos. Cheguei a ligar para ele umas duas vezes, no máximo. As lembranças,
praticamente todas, de sua vinda e companhia, estão aqui registradas. Foram
apenas dois dias, mas memoráveis. Com a sua derradeira partida, todas essas
passagens pintadas há 14 anos me voltam à mente. Tão distantes, que sinto como se
fora um filme antigo. Esforço-me para lembrar mais detalhes, todos, porém
muitos se perderam irrecuperavelmente, assim como a minha coleção da Turma
do Pererê, valiosamente ali autografada, contudo, degustada criminosamente
por meus vis cupins.