Quando tive que elencar
obras de autores cearenses para publicação na coleção “Nossa Cultura” da
Secretaria da Cultura do Ceará, achei que teria alguma dificuldade. Qual nada.
Acabei por descobrir que a maioria dos livros publicados no Ceará só teve uma
primeira edição — muitas vezes em tiragens mínimas —, mesmo aqueles que são
considerados referências da historiografia literária: “O Canto Novo da Raça”,
livro inaugural do modernismo no Ceará, “Coroa de Rosas e de Espinhos”, de
Mário da Silveira, autor precursor desse modernismo, “Prelúdios Poéticos”, de
Juvenal Galeno, marco do romantismo cearense, “Quem Com Ferro Fere com Ferro
Será Ferido”, também de Galeno, pioneiro da dramaturgia escrita e encenada no
Ceará, inédita e publicada 151 anos depois, “Obra Perdida de Américo Facó”
(“Sinfonia Negra” e “Poesia Perdida”), “Minha Terra” – poesia parnasiana —, e
“Retratos e Lembranças”, ambos de Antônio Sales, “O Livro dos Enforcados”,
contos de Gustavo Barroso, “Romanceiro de Bárbara”, poesia épica de Caetano
Ximenes Aragão, dentre outros. Para mim, é histórico e notório o desinteresse com
a manutenção e difusão do nosso patrimônio literário. E, confesso, digo “nosso”
sem acreditar muito na existência do sentimento de pertença do povo cearense, a
mesma “inexistência” que estimula a destruição completa dia após dia do
patrimônio artístico-cultural e arquitetônico no Ceará. Chego até a crer que os
posteriores “lamentos”, após as constantes derrubadas nos feriados prolongados,
são falsos, frutos da simples falta do que fazer ou dizer.
Durante a pesquisa para a
publicação de tantos títulos, descobri também que há pouquíssimos estudiosos na
temática — o que a princípio deixou-me confuso — e os que ainda encontro,
muitos deles, escrevem sobre as obras baseados na pouca e rara crítica
literária existente, sem jamais ter tido o trabalho de lê-las, confiando piamente
nas opiniões, por vezes equivocadas, de antecessores. Também encontrei outros
que defendem, sem tremer a cara, erros históricos, mas que, como ninguém sabe
de nada nem tem o interesse de saber, acabam por deixar como estar sem entender
que aquele erro difundido e propagado, num futuro não tão distante, pode vir a ser
levado a sério.
Conheço muita gente do curso
de Letras que afirma, estranhamente, não gostar de literatura, menos ainda da
cearense, que não conhecem. Acham uma bobagem perder tempo discutindo e
estudando isso, enquanto cada vez mais a linguística ganha novos adeptos.
Na escola, depois do
advento do ENEM, se fala cada vez menos sobre a literatura do Ceará. A
impressão que se tem é que aqui, além da aridez do clima, também nossos
escritos não vingaram. Nada se colhe de bom no Ceará é o que provamos.
Enquanto que no curso de
História da Universidade Federal do Ceará as disciplinas de História do Ceará I
e II são obrigatórias, no curso de Letras, da mesma UFC, as disciplinas de
Literatura Cearense I e II são optativas e, devido a diversas questões, não são
ofertadas em todos os semestres. Ora, é óbvio que se essas disciplinas fossem
obrigatórias — são muitos os argumentos em defesa disso —, não faltariam
professores nem alunos para ela. Tememos que a ausência da oferta, a aumentar a
cada semestre, se torne ainda mais frequente, a exemplo do princípio número um
do marketing: “Aquilo que não é visto não é comprado!”. Outra prova disso: quando
lançava os livros da coleção “Nossa Cultura”, não raro os editores presentes me
diziam que eu só editava aqueles livros porque trabalhava em órgão público,
pois que todos sabiam: aqueles livros não eram de interesse de
consumidores/leitores. Creio que eles não estavam enganados. Apenas pelo fato
de a Bienal do Livro ter como tema a Padaria Espiritual — temática criada por
mim — fez com que algumas editoras investissem na publicação de livros em torno
dela, assim como sabemos que outras editoras só se empenhavam na publicação de
clássicos e contemporâneos cearenses quando as obras eram, na época, elencadas
no Vestibular. E, por esse motivo, apenas por esse, os professores e alunos das
escolas do Ceará as liam. Mas, o melhor: muitos deles se surpreendiam com a
possibilidade de se ler e de se gostar da literatura feita em sua própria terra.
Da mesma forma, penso
qual é o estímulo de um professor para se debruçar na pesquisa e no estudo de
algo tão desvalorizado, sem procura, quanto essa misteriosa, inalcançável,
talvez odiosa, Literatura Cearense.
Dia desses fui convidado
para participar como jurado de uma semana cultural em uma grande escola de
Fortaleza. Numa das salas, uns adolescentes apresentaram uma espécie de jogral
com recortes de textos poéticos de autores, a maioria contemporâneos, de outros
estados. Perguntei o porquê de escolherem aqueles autores sem destaque nenhum.
Responderam-me: “eles eram desconhecidos e as pessoas precisavam saber que há
muita coisa boa na nova poesia brasileira”. Surpreso, perguntei, então, o
porquê de naquela lista não constar autores cearenses. Foi quando uma mocinha
de olhos brilhantes de 16 anos, linda e ingênua como uma pérola alencarina,
respondeu-me no ato: “No Ceará não existem poetas." A orgulhosa mãe da
menina, que distribuía bolachas e cafezinhos para a audiência, tremeu-se toda
com a afirmação lampejada da criatura, objeto de seu candor: "Tem certeza
disso, minha filhinha?". Sim! Como todo jovem, naquela idade, ela tinha
todas as certezas do mundo!