O que entra por
um ouvido e sai pelo outro chama-se olvido. Dessa passagem costuma não restar
qualquer marca, nem mesmo a título de cera residual. É que o esquecimento raspa
tudo. Raymundo, como lembram os versos de Drummond, rima com mundo. Parece
pouco!? Não o é. Os próprios versos de Carlos, aqui ainda o Drummond, em que se
ouve dizer o que parece gracejo (gracejo no sentido de, diante de tão vasto
mundo o que pode um homem comum senão tirar um sarro da relação entre a
existência e os recursos formais possíveis da representação do real
poetizável?), o guardam do alcance do olvido (este buraco negro da memória).
Não é pouco rimar Raymundo com mundo, não é pequena a rima de mundo com
Raymundo, porque nosso Raymundo dá as mãos ao mundo. Por isso, vale a pena.
Sim, vale a pena preservar Raymundo Netto! Que não lhe cubra corpo e alma o
manto do olvido! O que se deu com muitos; como se dará com outros tantos.
A sorte dos
Carlos, a sorte do mundo, é haver um Raymundo com um pé na poesia e outro no
mundo. O mundo de Raymundo Netto é vastíssimo, mas é sobretudo vastissimamente
alencarino. Tirar esse mundo, em especial, o seu domínio cultural escrito, de
debaixo do manto do esquecimento é uma das faces do trabalho desse Netto do pai
de Deca Costa. Eu disse faces. Sim, são muitas. Não cabe aqui listá-las;
haveria imprecisões.
Não sou
pesquisador como ele o é. Não tenho, como ele a tem, dos Titãs a sanha para
passar além da serra da Aratanha. Sou seu leitor; sou admirador de seu trabalho
raymundo neste mundo alencarino. E, antes que eu apresente uma materialidade
dessa admiração, digo que assim como há o manto do esquecimento, há o da
lembrança.
Quando as
crônicas quinzenais de segunda no jornal O POVO (absurdas, ordinárias ou
memorialistas); quando os editais de incentivo à cultura; quando os cursos à
distância pela Fundação Demócrito Rocha; quando a edição de livros sob sua
curadoria pelas Edições Demócrito Rocha; quando esse tanto de fazeres diversos
não possa mais estampar seu sorriso sempre acolhedor, que possa um novo manto
sudário estampar sua face síntese: Raymundo Netto de mãos dadas com o mundo, o
mundo alencarino!
Quanto à
materialidade da minha admiração, ei-la: em 2019, por volta do mês de setembro,
do forro da biblioteca escolar, pendurou-se um nome. Abaixo dele há uma
estante: é uma gibiteca. Quando um aluno, em vez de tomar nas mãos um exemplar
de HQ, dirige os olhos para o alto, invariavelmente duas são as perguntas que
faz: o que é?; quem é? À primeira eu respondo sem delongas: “Um nome: Raymundo
Netto”.
À segunda a
resposta vem com um convite: "Senta que lá história!" Convoco os
Acangapebas; leio uma crônica absurda de segunda; pondero que o amor pode sair
barato quando é de graça; puxo um exemplar da coletânea Enem. Então, chamo sua
atenção para o nome que aparece em todo esse material e pergunto: "Merece
ou não merece estar lá no alto?"
O
reconhecimento do merecimento se dá pela exclamação de assombro expressa pelos
olhos arregalados e a confirmação desse assentimento, pelo movimento, com o
queixo caído, da cabeça para cima e para baixo. É tudo? Não. Eventualmente,
algum aluno pede pela explicitação da relação entre o nome e a gibiteca. Então,
estendo as mãos e lhe ponho diante dos olhos, ainda arregalados, um fascículo
do Curso Básico de Histórias em Quadrinhos, outro do Curso Quadrinhos
em Sala de Aula: estratégias, instrumentos e aplicações, o livro História
das Histórias em Quadrinhos no Ceará, a revista Antologia HQ. “Vês?”
Raymundo Netto: ora organizador, ora coordenador geral e editorialista.
Raymundo rimar com mundo é muito na poesia do
Carlos Drummond de Andrade. Pouco são um novo santo sudário e uma singela
biblioteca de escola pública. Pois se uma biblioteca municipal inteira não está
capaz de impedir que a memória criativa do Carlos Cavalcanti se perca em uma
rua qualquer do esquecimento, o que dizer de duas ações pequenas que apenas
fazem a vida, enquanto viva, valer a pena?
Os dois Carlos
estão mortos. O Drummond é lembrado sempre que Raymundo rima com mundo. O
Cavalcanti, olvidado, só é lembrado quando Raymundo, para além de rimar, é, por
seu esforço, solução quase milagrosa (lembremos: de água fez-se vinho) para a
transformação de seu esquecimento em sua lembrança.
Raymundo Netto
está vivo! Vivíssimo! É vasto! Vastíssimo! É alencarino! Alencariníssimo! Por
isso, pena em sua lida em prol da memória alencarina. Por isso, por sua pena
nos convoca a pelejar em prol do alimento nativo que alimenta nossa memória
alencarina. Sem Raymundo não saberíamos o valor do que poderíamos perder ao
esquecimento. Com Raymundo sabemos que podemos pelo menos esgarçar o manto do
esquecimento daquilo que deve permanecer vivo na lembrança. Viva Raymundo
Netto! Preserve-se ( , )Raymundo Netto!
Então reafirmo: vasto Raymundo!
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