Todos têm — e aí o “quase” é certo — o melhor pai do mundo. Daí de não
tomar tempo alheio a endossar o clichê. Meu pai, José Pedro, pelos amigos o
“Deca”, para os colegas o “Costa”, é pernambucano. Sargento do Exército —
imitando o pai, cabo mestre-carpinteiro Raymundo —, veio a Fortaleza com 25
anos, onde morou no sobrado da tia Francisquinha, na Padre Mororó. Depois, num
baile do extinto clube General Sampaio, conheceu Zenaide, a “Zena”, estudante
de odontologia — pioneira entre as mulheres no curso da UFC —, minha
não-sabia-ainda mãe.
Em calções, “descobriu” que os filhos gostavam
sempre mais das mães, então decidiu ele, na certeza franca de menino, que
amaria mais a seu pai. E assim foi.
Conta que o vovô era durão e quando dava a bater em
um filho, coisa rara, aproveitava e batia em quem estivesse por perto — eram 8
os irmãos — e tivesse lá o seu saldo de palmatória. Já sargento, homem
feito, um dia chegou em casa num momento desses e, seu pai, vendo-lhe à porta,
disse: “Venha, você, que também não é flor que se cheire!”. Estranhou, mas com
devido respeito filial, ainda pediu: “Papai, deixa só eu tirar a farda porque
apanhar de farda...”
Meu pai sempre fora conhecido pelo bom humor, pelas
tiradas espirituosas e inteligentes, pela visão leve de vida, pelo cuidado
gratuito com as pessoas e pela generosidade com os que estavam à sua volta e
dele precisavam. Sem exagero, “pai de todos”, nunca o vi reclamar de nada ou
praguejar de coisa alguma, ao contrário, muito prático e sem tempo para
queixumes, resolvia tudo numa facilidade que chegava a nos dar, ingênuos por
natureza, a impressão de que qualquer coisa no mundo seria possível. Contudo,
ainda lembro-me do dia em que levou minha vitrola, presente de Natal, para
consertar — veio da loja defeituosa — e a roubaram de seu carro, provavelmente
por descuido seu. Chegou em casa, aflito. Eu, a perguntar pela vitrola, e ele
sem me responder, botando a casa abaixo em busca de dinheiro para comprar
outra. Minha mãe, guardiã de seu ordenado, entregue inteiro e religiosamente
todos os meses, sabendo do ocorrido, o revelou sem vexames para mim e, diante
do olhar encabulado de meu pai, assim só o vi desta vez, sentenciou: “Deixa
para lá, Deca, ele não devia merecer. Depois compra-se outra.” O que ela
fez, sim, anos tarde demais.
Éramos seis crianças, tinha ele uma Kombi. Por
isso, dava-se a oferecer carona a todos, e estes se sentiam à vontade de
convidar outros, e assim por diante — chegou a dar segunda viagem para “cumprir
a lotação”. Em época de pouca legislação, a Kombi saía ruidosa, portas abertas,
com panelas, gaiolas e até com bicicleta dentro, distribuindo gente e
gargalhadas pela cidade.
Assim também era de caber todo mundo a nossa casa:
“ovelhas negras” de família, mulher que apanhava de marido, filho que dava
trabalho, parente “em trânsito”, gente doente, candidatos a suicidas,
empregadas gestantes — chegamos a ter três de uma só vez —, mãe solteira ou
rico que ficou pobre, todos acabavam no endereço da Benjamim Barroso. Era quase
uma pensão. Até um dia desses, mamãe, pessoalmente, fazia o prato, escolhendo a
melhor comida para dar aos esfomeados da calçada. Assim como, até há pouco
tempo, e isso me faz falta, todos os domingos, seu Costa, olhando para cadeira
vazia, dava a tamborilar os dedos na mesa larga da cozinha, feita sobre medida
para família grande, e cantava trechinho de música preferida: “Naquela mesa ele
juntava gente e contava contente o que fez de manhã/E nos seus olhos era tanto
brilho/Que mais que seu filho/Eu fiquei seu fã.”
Certeza de apaixonar de cara por uma pessoa assim "duas viagens" ah Raymundo, suas lembranças, assim como as palavras que escolhe, são êxtase. Um abraço grande, extensivo aos que se foram
ResponderExcluirMuito obrigado, Lucirene. Sim, papai é essa pessoa apaixonável. Como dá saudade...
ExcluirQue crônica maravilhosa! Sinto também muita saudade do meu pai. Lembrei da veraneio cor caramelo que brincávamos por horas. Pertinho de vcs, na rua Padre Anchieta.
ResponderExcluirMuito obrigado, Nice, minha amiga.
ExcluirMá sorte a do ladrão da vitrola! Não a tivesse furtado! Num assalto certamente teria ouvido do seu Deca: " Calma, meu filho! Que aperreio é esse? A vitrola tá quebrada. Se puder esperar, o conserto é pra ontem. Quero que a leve em boa condição de uso; pro seu deleite. " Três gerações; três corações. O do avô, que batia; o do pai, que apanhava ( e arrebanhava quem mais pudesse kombi a dentro/casa a dentro; o do filho/Netto, que palpita a cantarolar a alegria de ser filho de Deca Costa.
ResponderExcluirProf. Armando Lucas fazendo das suas... Muuuito bom.
ExcluirPois não é que sou xará do seu pai? Em casa todos me chamam por Deca. Algumas amigas das antigas também. Amei essa crônica, essa kombi... tudo.
ResponderExcluirAh, é? Tenho fascinação por "Decas". rsrs Muito obrigado, Zélia querida, pela leitura e... tudo.
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