segunda-feira, 18 de março de 2019

"Evidências", de Raymundo Netto para O POVO



Caminhava na calçada quando, em um monturo encostado ao poste, notou uma volumosa pasta colecionadora azul. Curioso, olhou para os lados – não era de remexer em lixo – e a pegou. Era uma espécie de álbum de recordações. Passou as suas páginas e encantou-se com a mulher sempre presente nelas – provavelmente, a autora daquele registro. Levou-o para casa.
Nos próximos dias, tornou-se a sua leitura de cabeceira. A moça, sem dúvida, uma obsessiva. Ali, o passo a passo de uma história de amor. Havia colagem de fotos – muitas delas eram cuidadosamente recortadas e cobertas por canetas hidrográficas coloridas –, ingressos, pulseirinhas, guardanapos, restos de flores, fios de cabelos, cartões, poemas em esferográficas. Nas fotos: encontros em restaurantes, folia de carnavais, festas a fantasia, reuniões familiares, momentos íntimos, comemorações de aniversários de namoro e de casamento.
Como não cair fundo de paixão por alguém tão dedicada a um seu amor? “Mas por que jogaria aquilo no lixo?” Então, ele passou a não prestar para mais nada nessa vida. Aonde andasse, seu olhar incessante procurava por aquela a tomar por inteiro todos os seus suspirosos pensamentos.
Um dia, estava em um café quando, finalmente, ela apareceu. Vinha com uma senhora – reconheceu a mãe. O mesmo sorriso das fotos. Mais magro, assim como ela, e os cabelos mais curtos. Esperou o momento certo, inventou uma desculpa e se aproximou. Pediu para sentar, se poderia ligar, queria lhe contar uma história. Nada demais. “Vê-se tratar-se de um cavalheiro, minha filha”, assentiu a mãe. Assim, somente assim, ela ofereceu o número de seu telefone.
Naquela mesma noite ele ligou. Conversaram muito. Ela o ouvia sem entusiasmo. Mas ele era insistente e falava de lugares e de coisas que ela gostava. “Que coincidência, mãe...” Daí, conseguiu o primeiro encontro. Depois, o segundo e mais outros e outros: “Minha filha, você tem que se distrair...”. Desde então, ela já lhe confidenciava a sua tristeza e decepção. Fora casada. O marido a quem devotara tanto amor, a traíra covardemente. “Nem todos são iguais. Você tem que acreditar”, afirmava o bom ouvinte, pegando-lhe a mão trêmula e beijando-a quase como quem prova do ar pela primeira ou uma última vez.
Porém, após meses de uma convivência despretensiosa e agradável, de passeios e confissões mútuas e intermináveis, ela percebeu que o companheiro não se conformava apenas com a sua amizade. Ela gostava dele, sim, e muito, mas como amigo, um bom amigo somente. Tinha que ser sincera e o foi, dilacerando o coração do pobre homem, iludido de amores. “Pode me procurar depois, viu, mas somos apenas amigos...”
Não demorou muito, ele exigiu dela um novo encontro, nem que fosse o derradeiro. Precisava lhe mostrar algo. Ela relutou, mas não poderia negar isso a ele.
Encontraram-se no banco do parque. Ele estava soturno, tão triste quanto uma noite sem estrelas, trazendo, agarrado ao peito, uma sacola. Logo que sentou-se, ele passou para ela um álbum, mas não aquele, outro, de autoria própria, com inúmeras fotos dos dois, recortadas cuidadosamente e coladas em glitter e canetinhas hidrográficas, além de guardanapos, cartões, letras de músicas de gosto comum...
Ela não acreditava no que vira. Seus olhos escancaravam-se a cada página folheada. As lágrimas tombavam por sobre aquele pequeno museu pessoal, quando ela olhou para ele, meneou a cabeça lentamente e agarrou-se firme ao seu pescoço, numa convicção perversa:
– Minha alma gêmea!



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