Deu entrada no hospital, carregado numa maca ligeira, o velho.
Sua
respiração era curta, hesitante, e o olhar bacento. Curiosos, que o viram à
porta, afirmavam:
— Esse não
volta mais...
O sábado
acordava em pleno carnaval, sob uma comemoração em gotas finas de chuva.
Oh,
jardineira por que está tão triste, mas o que foi que aconteceu? Foi a camélia
que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu...
O velho
havia sido recolhido em seu quarto de pensão, aparentemente, morto. Era um
milagre ainda respirar. Mas para quê?
Ele via no
teto, distorcidas, aquelas luzes, e lembrava-se de um tempo quando as luzes o
procuravam.
Era
carnaval outra vez... Ah, como ele amava o carnaval...
Havia tempo,
vinha a lembrança, desfilava no corso com as autoridades da cidade. Os
populares nas ruas, sacadas e escadarias, davam-lhe as mãos, acenavam-lhe,
aplaudiam e saudavam-no com uma generosa chuva de confetes, serpentinas
coloridas e sorrisos cativantes.
Taí,
eu fiz tudo pra você gostar de mim. Ah, Meu Deus, não faça assim comigo não.
Você tem, você tem que me dar seu coração...
Sim, num
palanque de madeira na praça do Ferreira era ele quem, portando as chaves da
cidade, iniciava as festividades oficiais do carnaval. E como era esperado!
Quanto fascínio e admiração ele provocava naquelas pessoas sempre tão alegres,
tão sem tristezas...
Quanto
riso, oh, quanta alegria, mas de mil palhaços no salão. O Arlequim está
chorando pelo amor da Colombina no meio da multidão...
Saía,
ainda jovem, pelas ruas da cidade a pular o carnaval. Seus joelhos eram fortes,
o calor era grande, mas nada o impedia de dançar... Nada nem ninguém!
Enquanto
isso, as bandas do Exército e da Polícia Militar tocavam, em meio aos foliões,
as marchinhas gostosas dos carnavais daqueles tempos.
Na Duque
de Caxias, desfilavam os negros cordões de maracatus. Lá pros lados da
Gentilândia outros blocos surgiam a cada dia.
Tantos
casos de amor ele vira desabrochar na euforia dos salões. Ele mesmo, quantos
amores não colecionara durante os folguedos? Fizera tantas promessas, trocara
juras... Onde, onde estariam todas elas?
Será que o esqueceram? Para que se enganar? É claro que não!
Se
a lua contasse tudo que vê de mim e de você muito teria o que contar. Contaria
que nos viu brigando e viu você chorando me pedindo pra voltar...
Buscou na
memória a jovem Teresa, curvas inesquecíveis, que o recebera com honrarias de majestade,
a pedido do Governador, no Palácio da Luz. Fora amor à primeira vista, porém,
que fenecera em poucos anos ante a revelação de uma paixão maior: a folia!
Esta, felizmente, só o abandonara com o advento da idade, da miséria e da doença.
Ah, e a Aurora,
então? Jurara de pés juntos que não o deixaria por nada, mas por nada e com
nada o deixou.
Se
você fosse sincera, ô, ô, ô, Aurora. Ai, Meu Deus, que bom que era, ô,ô,ô, ô,
Aurora...
Mesmo
assim, a princípio, lavava sua dor a chiringadas de lança-perfume, embriagado
com o som dos apitos e nas risadas livres da alegria popular.
Depois, o
inevitável: caiu vertiginosamente num abismo de bebedeira que superava o
carnaval e permanecia durante o ano inteiro.
As águas
vão rolar. Garrafa cheia eu não quero ver sobrar. Eu passo a mão no
saca-saca-saca rolha e bebo até me afogar... Deixa as mágoas pra lá!
Foi muito
fácil perceber que o seu reinado chegara ao fim. Sabia que estava um farrapo de
gente. Ninguém lhe daria atenção, desde então... Ninguém! Eles não se dignavam
nem a recebê-lo. Também pudera, daquele jeito.
Ei,
você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí. Não vai dar? Não vai dar,
não? Você vai ver que grande confusão. Eu vou beber, beber até cair... Me dá,
me dá, me dá, Oh, me dá um dinheiro aí...
Nas noites
em que não conseguia chegar à pensão onde morava, dormia na praça e nos
botecos. Até de um cabaré safado fora expulso certa vez. Era, definitivamente,
uma réstia de rei.
Nos
últimos carnavais, a bebedeira rolava frouxa e, misturada com diversas
“novidades” que surgiam, ficava ainda mais fora de si. O “Momo”, como era
jocosamente conhecido nos bares, lamentava a deturpação dos valores do amado
carnaval, mas, depreciado, infeliz, ridículo e fraco sua voz não ecoava, ao
contrário, produzia ruidosas gargalhadas da estranha confraria. Não havia mais
nada a fazer. Seus sonhos foram definitivamente descosidos. Seu tempo havia
passado, assim como o seu carnaval.
Pode
me faltar tudo na vida: arroz, feijão e pão. Pode me faltar manteiga e tudo o
mais não faz falta, não. Pode me faltar o amor, disso até acho graça. Só não
quero que me falte a danada da cachaça!”
Num susto,
sentiu os médicos apertarem-lhe o peito, na tentativa de fazer seu coração
desesperançado reagir. Que ele tivesse mil corações, trocaria todos por uma
única e derradeira noite de carnaval. Não abriria mão de nada! Sorveria todas
as fantasias, colheria todos os abraços, dançaria a noite inteira, se possível.
Mas não foi.
Os
confetes e serpentinas não precisavam mais do seu rei. A folia tomava vulto
independente de sua presença. As pessoas nem lembravam mais dele. Uma antiga
foto sua, que ainda perdurava na parede de um outrora tradicional restaurante,
fora trocada por um calendário de mulher pelada.
A chuva
ainda caía na cidade, quando, numa banca de revistas, uma chamada minúscula
numa coluna anunciava, com atraso, o enterro de um rei desterrado.
Quem parte leva saudades de alguém que
fica chorando de dor. Por isso eu não quero lembrar quando partiu meu grande
amor. Ai, ai, ai, ai, está chegando a hora... O dia já vem raiando, meu bem, e
eu tenho que ir embora...
Como um conto, grau DEZ, aliás como todos os contos de Raymundo Neto. Alguns versos das músicas merecem revisão.
ResponderExcluirE quem é meu "Anônimo", amigo, para me ajudar?
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