Parafraseando John Fante: 2017 foi um
ano terrível! A economia saiu do eixo, depois de mais de uma década sob controle;
a situação política, então, nem se fala – as frágeis máscaras de nossa recente
democracia caem a cada dia: alianças pregadas com cuspe derretem ao mínimo
“bafo”; sobram lamas e detritos pelos riachos desse pobre projeto de país.
Poucos escapam deste lado e do outro do balcão de negócios que se tornou a
“república-das-bananas”. Eleitores aos borbotões apontam o indicador para os
políticos, esquecendo-se dos outros três dedões voltados pra si (e o
“mata-piolho” cruelmente cravado pra Deus). O “Golpe Branco” dado pelas
velhíssimas oligarquias políticas e judiciárias está em plena execução. Velhos
fantasmas teimam em sair dos armários: moralismos baratos, vinganças sociais,
soluções radicalmente fáceis; aves de rapina disfarçadas de pássaros exóticos
espreitam seus imensos bicos tortos, sentindo já bem perto o cheiro do sangue,
cutucam a onça com suas garras sujas.
Nasci em pleno golpe militar de 1964, na
falsa ordem dos porões velados; bem disfarçados em figurinhas de generais,
poetas e educadores distribuídos pelas escolas; eu mesmo colecionei muitas de
Costa e Silva, Geisel, criminosamente misturados com Castro Alves e Marechal
Rondon; trocávamos, ainda bem, pelas de Jairzinho, Gerson, Tostão e Pelé, que
eram mais valiosas para a molecada que já rolava a bola “canarinho” (mas nela
injetávamos óleo queimado para que ficasse pesada e parecendo com a “dente de
leite”, que só os mais abastados podiam comprar) pelos muitos campinhos da
cidade.
As comemorações do Dia da Bandeira, da
Proclamação da República e, principalmente, do movimentado 7 de Setembro eram
sempre muito esperadas pela meninada; a plateia agitando bandeirinhas, os
soldados do Tiro de Guerra de Crateús fazendo malabarismos, manobras e
demonstrações arrojadas: nós, os menores, sonhando em sair da rabeira da fila e
ir para frente, lugar sempre destinado aos mais altos e bonitos; já quem tinha
alguma habilidade disputava lugar na “banda”, que orgulhosamente ostentavam
seus instrumentos pelas ruas principais.
Somente nos tempos de estudante em
Fortaleza foi que essa imagem idílica da minha infância foi sendo
desconstruída, vieram as primeiras leituras sugeridas pelos novos amigos –
recordo bem de Cartas da Prisão e Batismo de Sangue, do Frei Betto, A Ilha, de
Fernando Morais, dentre outros; apenas na universidade é que essas leituras
mais políticas foram dando lugar à paixão pela literatura, desde o apaixonante Feliz
Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, ao Cem Anos de Solidão, recém lançado por
Gabriel García Márquez...
De todas essas memórias, verdadeiras e
falsas, da meninice, coladas e (felizmente) despregadas depois, ficou um gosto
meio (e perigosamente) dúbio pela falsa ordem, pelo moralismo barato, pelo
discurso nacionalista, que sobem das pernas, passando pelo intestino,
escorregam estômago acima, inflam o peito, mas que, felizmente, rebatem no
cérebro, que tenta, coitado, nem sempre com êxito, desconstruir todos esses
perigosos mitos da infância.
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