De acordo com Marisa Martins
Gama-Khalil (2009, p. 64), para a literatura fantástica, “o espaço desempenha
uma função fundamental: a de ser o elemento instigador da ambientação fantástica”,
de modo que as espacialidades passam a figurar, dentro do fazer artístico, como
gatilho desencadeador dos efeitos fantásticos. Por essa diretriz, encontramos
uma confluência entre essa assertiva e a colocação de Claudia Barbieri (2009,
p. 105, grifo nosso), de que: “A construção espacial da narrativa deixa de ser
passiva [...] e passa a ser um agente ativo: o espaço, o lugar como um articulador da história”. Assim, fundamentado por
esses pressupostos, nosso trabalho tem por objetivo discutir o protagonismo
espacial no conto “A casa vista da estrada”, do autor cearense Luís Marcos da
Silva (2011).
O enredo é construído a partir da
relação de um homem e uma casa que, possivelmente, fora recebida de herança de
seus avós; é interessante pontuar o fato de a personagem ter duas formas de
interação com a casa, sendo uma pelo expediente da vigília, quando apenas
observa a distância: “Observou a casa lá do alto, soberba, e pensou que ela
devia ter sido ainda mais no tempo dos seus avós” (SILVA, 2011, p. 419); e a
outra no modo onírico, quando alcança os espaços internos do imóvel: “A sala
era ampla e ele estava posicionado no centro da mesma. [...] Seu sono é
interrompido abruptamente [...]” (SILVA, 2011, p. 419). Embora por duas
perspectivas distintas, a impressão que a personagem tem da casa parece
convergir para uma única leitura, a de que essa não é uma habitação comum. Tal
discrepância com a normatividade pode ser aferida pela adjetivação empregada,
pois, tratando-se de uma casa soberba, essa característica a coloca em plano
superior, há uma elevação não explicada. Ademais, há ainda a suposição de ela
ter sido mais altiva no passado, sem que seja revelada a motivação para essa
hipótese, se por sua localização, sua dimensão ou uma causa secreta.
Quanto ao segundo tipo de interação, é
digno de atenção o fato de a personagem estar no centro de uma sala ampla. Tal
posicionamento sugere que o domínio, tanto do espaço quanto do sujeito, pertence
a casa, ela é, proporcionalmente, superior e envolve a personagem, impõe
limites, ou seja, a espacialidade é dominada pela casa, o homem está e é em
função dela. Desse modo, o espaço torna-se um articulador de posicionamentos e
age nas instâncias do ser e do estar, determinando comportamento e entendimento.
A espacialidade é, portanto, um “conjunto de indicações – concretas ou
abstratas – que constitui um sistema variável de relações” (SANTOS; OLIVEIRA,
2001, p. 67). Sendo assim, compreendido enquanto sistema relacional, o espaço
funciona para o fantástico como contraponto no estabelecimento da ruptura com o
cotidiano. É pelas espacialidades ocupadas e suas indicações que determinado
fenômeno ganha a dimensão da incompatibilidade, da inadequação com o cotidiano
reconhecido. De tal maneira, o domínio exercido pela casa é a condição para a
existência do fantástico no conto, isto é, o tratamento dispensado ao espaço
torna-se fundamental para que a incompatibilidade com o naturalmente possível
se estabeleça.
Vale
ressaltar que nesses dois níveis de contato percebe-se um misto de fascínio e
resistência em relação à propriedade. No campo da observação fica claro que o
homem, embora tendo se recusado a visitar a casa, pois “Havia sempre algo que o
sobressaltava” (SILVA, 2011, p. 419), não consegue ignorar sua existência e
segue fazendo incursões aos arredores para, de alguma forma, estabelecer
contato com a edificação. Essa aproximação acontece em um movimento crescente e
a cada nova inspeção ele se depara com uma versão alterada dessa construção
indecifrável. Assim, no primeiro contato ele apenas dá “voltas pelas
cercanias”, depois “por outro ângulo, fica observando a casa” (SILVA, 2011, p.
419). Na sequência, “um pouco mais de perto ele observa a casa mais uma vez” e,
por último, “de ângulo mais alto fitava a casa” (SILVA, 2011, p. 420).
A
casa vai atraindo o seu observador e esse enleio se intensifica a cada passo
dado em sua direção. Tal ênfase fica evidente tanto pelo advérbio de intensidade
quanto pelos indicativos de acercamento contidos nas posições adotadas em
relação a casa: mais perto e mais alto. Existe, portanto, uma força dominante
que alicia o homem, poderes que se agigantam contra sua vontade, conduzindo-o
para o lugar do desejo e, ambiguamente, de sua negação. De acordo com Filipe
Furtado (1980), a manifestação fantástica será sempre superior à personagem
que, por sua vez, adotará uma postura subalterna diante do fenômeno, ou seja,
no modo fantástico o acontecimento é privilegiado em detrimento da ação da personagem.
No
campo onírico é acrescido a esse duo, desejo/resistência, um novo sentimento
que vai avultando em tamanho e efeito. Em termos de episódio, a personagem, que
passa a transitar pelo interior da casa, se vê diante de um negro que traz um baú
cheio de vermes e ouro, no segundo sonho o mesmo negro reaparece, agora trazendo
“um pombo branco ensanguentado entre os dentes” (SILVA, 2011, p. 420) e, na
última narrativa, é surpreendido com “uma cabeça humana decepada” (SILVA, 2011,
p. 420) que cai sobre ele. Experienciar esses fatos causa uma visível perturbação
e esta se traduz pela condição em que o homem desperta, sempre molhado de suor,
indicando o desconforto provocado pelo sonho: “Novamente ele acorda atordoado” (SILVA,
2011, p. 420). Sendo assim, proporcionalmente à bizarrice da cena cresce a aflição
do testemunho e diminui a distância entre ele e a memória do espaço; há, pelo alarme,
uma espécie de familiarização, uma integração do homem em relação a casa. É
importante sublinhar que tanto o movimento de retorno, ação predominante no
expediente de vigília, quanto à presença no interior da casa, uma constante no
nível onírico, são realizações determinadas pelo espaço. É a casa quem delibera
sobre as ações, as reações e os sentimentos presentes na narrativa, de modo a
tornar-se protagonista da história. São, pois, as impressões causadas por esse
espaço o motivo norteador de todos os episódios, sejam eles acontecidos dentro
ou fora das suas delimitações.
Aqui
fica evidenciada a existência de duas dimensões, bem como o seu ponto de encontro.
Sobre essa condição fronteiriça, Remo Ceserani (2006, p. 73) diz que a “passagem
de limite, por exemplo, da dimensão da realidade para a do sonho, do pesadelo [...]”
é uma opção estética frequente nas narrativas fantásticas. Ainda segundo o
autor, dentro desses dois espaços a personagem se depara com códigos distintos
para se orientar e tentar compreender os acontecimentos que o envolvem. No caso
do conto em análise, há uma dupla ruptura de fronteiras feita em pares
opositores: desperto/adormecido e ignorância/conhecimento. Em cada um desses estados
são apresentadas pistas ao homem que o vão direcionando para mais perto das possíveis
verdades da casa e é assim que, enquanto acordado, ele mantém contato com
pessoas que parecem saber sobre a edificação, mas essas informações são
fragmentadas, desconexas e incapazes de formar um desenho elucidativo do imóvel
e sua história. Na verdade, a regularidade dessa mensagem acontece, embora
ainda envolta em certo grau de opacidade, no viés onírico da narrativa e é, justamente,
depois do último sonho que se formaliza uma contação obedecendo uma linha de
causalidade e coerência. Dessa maneira, surge um emparelhamento improvável,
pois estar acordado mantém sua ignorância ao passo que adormecido os fatos
fazem mais sentido, já que há uma espécie de continuidade narrativa a partir da
retomada de elementos. Os fatos são apresentados no sonho; ademais, é por esse
meandro inusitado que o homem entra na edificação e pode integrar o seu cenário,
presenciando aquilo que compõe a essência da casa.
É
válido pontuar que é a casa quem domina os espaços de tensão do texto, esteja a
personagem no campo da vigília ou no estado onírico, toda a movimentação é
determinada pela existência dessa construção. Ela se mantém imperiosa e ao
homem resta seguir, qual marionete, os chamados dessa espacialidade antropomorfizada
que impera nos dois domínios. Por essa constituição incomum, a casa pode ser
vista como a representação de um espaço descontínuo, aquele que rompe com o
reconhecível pela razão, uma irrupção do desconhecido no meio do mundo
cotidiano (VAX, 1960). Além disso, merece atenção a organização estética do
texto, a opção por intercalar os níveis sugere o passar do tempo e assim, interpolando
dia e noite, reitera a ideia de que a casa é uma constante na vida do homem,
ela domina seus pensamentos e sonhos. Há, portanto, uma espécie de retorno
temporal pelo sonho, de modo que a personagem consegue resgatar os
acontecimentos e rompe com a causalidade racional. Essa ruptura promove um tipo
de reversibilidade que impõe o estranhamento para a ordem das coisas. Dessa
maneira, a casa exerce ascendência também sobre o tempo que, embora siga uma
linha crescente, é para o todo da narrativa uma categoria reversível, condição utilizada
pelo modo fantástico para ampliar a contradição das certezas pretendidas (VAX,
1960).
Há,
ainda, que se ressaltar as participações dos interlocutores existentes no
texto: o negro, o menino com o bode, a velha senhora com o cachorro e uma jovem
mulher; todos eles, de alguma maneira, estão interessados ou têm conhecimento sobre
a propriedade. O negro, que só aparece no sonho, traz sempre uma mensagem
cifrada e, em termos gerais, dialética pelos elementos conflitantes
apresentados. No primeiro sonho ele mostra um baú cheio de ouro e vermes;
segundo Jean Chevaliere e Alain Gheerbrant (2007), enquanto o ouro é visto como
símbolo de perfeição, iluminação e conhecimento, os vermes são, quando encontrados
em sonho, interpretados como intrusos indesejáveis. Há, assim, um tipo de
negação imbrincada na invalidação de sentidos: ao homem são, simultaneamente, oferecidas
e negadas informações sobre a casa, essa que se estabelece como mistério. Para Filipe
Furtado (1980) o espaço casa tem aparecido como uma das escolhas mais
frequentes para a fenomenologia do fantástico e, nesse caso específico, ela
passa a ser o próprio fenômeno de ruptura dentro da legalidade cotidiana. Quanto
ao segundo contato com o negro, neste ele traz um pombo branco ensanguentado.
Aqui, o que seria a alegoria da pureza e da simplicidade surge maculada e a
nulidade de sua significação se concretiza pelo adjetivo ensanguentado. É uma
morte figurada das expectativas, pois todas as promessas de acesso vão sendo
suspensas ao passo que se apresentam. Esses dois encontros acontecem, conforme
já mencionado, nos domínios do onírico e, por conseguinte, em uma ambientação
noturna, o que indica a predominância de uma linguagem específica do
inconsciente, em contrapartida aos demais diálogos da narrativa, onde prevalece
a linguagem do dia, ou seja, a linguagem da racionalidade. Essa oposição entre
claro e escuro, dia e noite é muito recorrente no modo fantástico, bem como o
duelo entre realidade e abstração (CESERANI, 2006).
Desperto,
o homem encontra primeiro com um garoto que “tange um bode grande com uma
enorme cabeça preta e uma mancha branca em todo o dorso” (SILVA, 2011, p. 419).
Esse menino pergunta sobre uma possível transação de venda da propriedade e o
homem diz ainda não haver pensado nisso. Novamente uma colocação inusual vem
alargar o mistério que envolve a casa; essa indagação pode ser interpretada por
dois vieses, um o de que há alguém tentando alertar o homem sobre possíveis
problemas advindos da posse da casa ou, seguindo outra vertente, um artifício
para afastá-lo do lugar e garantir a intocabilidade do espaço. Pois bem, a
pergunta do garoto tanto pode ser um esforço para proteger o homem da casa
quanto o contrário, proteger a casa do homem. Somado a essa dualidade vem o
desaparecimento repentino da criança: “De repente uma lufada de vento levanta
uma imensa nuvem de poeira, e, quando ele se recupera do susto, o garoto e o
animal já têm desaparecido” (SILVA, 2011, p. 419). Aqui tem início um jogo de
aparições e desaparecimentos repentinos que terá continuidade com a figura de
uma “velha senhora trazendo consigo um cachorro de raça indefinida” (SILVA,
2011, p. 420). Usando extremos da vida, um garoto e uma velha, o narrador
estabelece a ideia de circularidade, isto é, a obsessão e o domínio da casa não
terão fim. De acordo com Louis Vax (1960), “o fantástico se nutre do escândalo
da razão”[1] e
é justamente esse inesperado que suscita a descontinuidade da ordem, é o
surgimento e sumiço desses interlocutores a ferramenta que desencadeia a
inquietude por levantar suspeita sobre a procedência dessas personagens. A esse
respeito David Roas (2014, p. 59) diz que a transgressão provocada pelo modo
fantástico gera inquietude diante da possibilidade “de que o irreal pode
irromper no real”. Sendo assim, são os movimentos do garoto e da velha senhora
que promovem o estranhamento, pois, além disso, não há nada de sobrenatural no
garoto nem na anciã.
Para
o último encontro foi reservada a participação de uma jovem que,
metaforicamente, poderia ser entendida como uma alusão ao tempo presente. Tal referência
encontra respaldo na comparação com os dois outros interlocutores: o garoto e a
velha senhora. Ademais, é com a participação dessa figura que o narrador localiza
o tempo dos acontecimentos em um passado indeterminado e o tempo da narrativa
no momento em que escreve os fatos: “Ele sorriu, ela apenas arqueou as
sobrancelhas e, sem demora, relatou o que escrevo-lhes agora” (SILVA, 2011, p.
420). Vale destacar o embaralhamento temporal predominante no conto, condição
que dilata a opacidade e, por conseguinte, dificulta a identificação tanto do
tempo da narração quanto da narrativa, isto é, o tempo em que se situa o
narrador da história e o tempo da história. Parece haver uma construção temporal
em encaixes, reforçando a ideia de rompimento de fronteiras já mencionada
anteriormente. Assim, o quesito temporalidade é, mais uma vez, usado em favor
do rompimento com a norma, é esse esfacelamento da periodicidade, elemento tão
caro ao cotidiano, uma das escolhas estéticas afiançadoras do fenômeno
fantástico verificado no texto em análise.
Cada
um desses encontros acontece em um ângulo de visão diferente da casa, indicando
o fracionamento da focalização, ou ainda, a impossibilidade de erigir uma
totalidade espacial, dificultando, assim, uma explicação que responda à
normalidade estabelecida e reconhecida pelo cotidiano. Além disso, essas
reuniões são sempre um movimento de negação que se estabelece na oposição
formada entre as marcas caracterizadoras dos seus participantes ou do espaço-temporal
em que esses contatos acontecem. Essas assimetrias são mais um aspecto demarcador
para o afastamento imposto pela casa, conforme se observa nos blocos do preto e
branco do cachorro, nas marcas temporais dia e noite, nos espaços de atuação
que se apresentam em duas dimensões: a primeira assinalada pelos cenários
internos e externos da casa e pelas instâncias sonho e realidade. Em todos
esses duos é possível verificarmos traços de desarmonia e, por consequência, incompletude
assegurando a ambivalência do texto que, esteticamente, se estrutura de forma
dialética.
Outro
aspecto relevante envolvendo esses interlocutores é a inserção de informações
sobre o espaço e seu suposto passado. Como exemplo destacamos o relato
transcrito pelo narrador, onde uma jovem reconta uma cena já referida por outra
personagem, relacionada a uma tentativa de compra dessa propriedade por um homem
misterioso, porém com detalhes diversos. Há, portanto, uma espécie de legendário
em torno da existência dessa casa, a formação de um passado que funciona como
“[...] memórias de pedra, depositárias de segredos sombrios que fazem nascer
uma concepção antropomorfa do local [...]” (CAMARANI, 2014, p. 127). É esse
espaço personificado que atua como agente da ação dentro do conto; é, pois, na
ruptura com a passividade do tradicional – contextualização e cenário –, que
surge o protagonismo da casa vista da estrada.
Maria Bevenuta Sales de Andrade
Universidade
Estadual do Rio Grande do Norte/
Fundação de
Apoio à Pesquisa do Rio Grande do Norte
REFERÊNCIAS
BARBIERE, Cláudia. Arquitetura literária: sobre a composição do
espaço narrativo. In: FILHO, O. B. BARBOSA, S. (orgs.). Poéticas do espaço
literário. São Carlos-SP: Editora Claraluz, 2009.
CAMARANI, Ana Luiza Silva.
A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo: Cultura
acadêmica, 2014.
CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar
Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.
CHEVALIER, J.
GHEERBRANT, A. [et al]. Tradução
de Vera da Costa e Silva [et al]. Dicionário de símbolos: mitos,
sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2007.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa.
Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
Gama-Khalil, Maria Martins. Espacialidades geradoras da
ambientação fantástica em A invenção do Morel. In: FILHO, Ozíris Borges;
BARBOSA, Sidney (Orgs.) Poéticas do espaço literário. São Carlos, SP:
Editora Claraluz, 2009.
SILVA, Luis Marcos da. A casa vista da estrada In: SALGUEIRO,
Pedro (org) O cravo roxo do diabo: o conto fantástico do Ceará.
Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011.
SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito,
tempo e espaços ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
VAX, Louis. Arte y literatura fantásticas. Traducción
de Juan Merino. Argentina: EUDEBA, 1965.
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