quinta-feira, 6 de abril de 2017

"1º de abril: hoje é Dia da Mentira", de Túlio Monteiro


– UAHHHH! Hora de acordar...não sou esse tal coelho maluco, mas vivo me atrasando – Falou lançando mão de seu relógio de algibeira o famoso Pilombeta, um sujeito que por si só já levava qualquer um às gargalhadas. Magricela, braços longos, uns dois metros de altura, óculos na ponta do nariz e sempre vestido com o mesmo paletó velho e escuro, o que o transformava em uma figura esquálida e desengonçada levando ao riso solto o mais sério dos senhores daquela Fortaleza de 1920.
Pilombeta havia acabado de acordar de mais uma noite de carraspana regada a cumbe, um tipo de aguardente de má procedência muito popular em tempos de escassez de cana-de-açúcar, uma vez que a seca do último 1915, praticamente devastara com o já árido Ceará daqueles tempos. Como não tinha casa, dormia onde fosse possível e naquela noite não deu outra. Estava a passar perto da Coluna da Hora da Praça do Ferreira, onde ficava a cacimba que abastecia boa parte dos estabelecimentos comerciais e moradias do centro daquela Fortaleza ainda tão descalça de paralelepípedos e asfalto, quando por lá pousou para um cochilo que levou horas. Era madrugada alta.
Ao amanhecer e sem acreditar que já badalariam oito horas da manhã, Pilombeta arrumou-se em seu único e surrado paletó, lavou os olhos e naquela que todos chamavam de fonte dos desejos da cidade e saiu desabalado rumo ao café do Pedro Eugênio. O café situava-se na segunda seção de bondes do Benfica, no lado par do bulevar, cercado por frondosas mangueiras sob as quais mesas de mármore com cadeiras de ferro fundido, acentos e encostos confeccionados em madeira envernizada, todas desarmáveis, embelezavam o lugar. Completavam o gracejo do lugar as paredes de madeira pintada de verde com recortes de madeira pendentes, delicadamente pintados de branco.
Naquele aprazível retiro intelectual, verdadeira junção de poetas e artistas de todas as classes sociais, reuniam-se para prosas e sarais ao ar livre. Aos sábados e domingos, centenas de pessoas se acotovelavam em busca de uma mesa que fosse para degustar os famosos pratos do lugar. Era o velho mugunzá, tapiocas, pães de milho, arroz doce e, claro, o prato-chefe da casa: a mais famosa panelada com unha de boi daquelas paragens. Tanto é que por lá caminharam juntos a falar de poesias e política gente do porte de Quintino Cunha, Fernando Weyne, Raimundo Ramos Cotoco, Moacir Caminha, Moésia Rolim, Ulisses Bezerra, Tomé Mota e tantos outros.
Como era sábado, Pilombeta, que ganhava a vida tocando piano nas seções de cinema mudo exibidas nos cinematógrafos do centro de Fortaleza foi se achegando e logo perguntou a Pedro Eugênio se havia por ali um pouco do que ele chamava de levanta-defunto para sua prova matinal. Rindo-se, o dono do local puxou-lhe uma cadeira e afirmou que estava a lhe buscar um pouco de panelada para curar-lhe a carraspana. Sabia que não seria pago por aquilo, mas compreendia que há fregueses que valem a pena se ter por perto na hora de um recital.
Pilombeta apressou-se à refeição, agradeceu dizendo a Pedro Eugênio que estava atrasado. E logo no dia mais importante de abril, nacionalmente conhecido como o da mentira que, em Fortaleza, por conta do espírito zombeteiro do cearense tem nele 24 horas inteiras para se contar toda a sorte de mentiras que se pode imaginar.
Chegou à avenida 7 de setembro, na Praça do Ferreira, ao meio-dia em ponto, esfregando as mãos e afirmando que naquele ano ele seria o vencedor do concurso de maior mentiroso da cidade, posto que era disputado quase a tapas com bombas, foguetes e a banda da Polícia Militar a tocar sambas, maxixes e polcas; torcidas organizadas e tudo o mais. Esse evento anual acontecia à sombra do famoso Cajueiro Botador[1], carinhosamente assim chamado pelo fato de janeiro a dezembro dar frutos vermelhinhos e muito doces.
E lá se foi Pilombeta sendo chamado para contar a sua presepada anual. Sem se fazer de rogado, mandou ver no verbo e na impostação da voz:
– Meu povo, essa história é a mais pura verdade, eu juro! – disse piscando o olho.
– Eu sonhei, em noite de muita chuva, com o futuro da nossa cidade. Vi coisas horripilantes que até Deus duvida. Para começar passou por cima da praça um avião imenso, não como aqueles da tal Primeira Guerra Mundial, mas, sim, um que cuspia fogo pelas asas e passou tão baixo que quase arranca os telhados das casas e dos cafés. O do Mané Coco. Hum! Desabou na hora, ficando por lá somente o gradil de outrora. Os carros nem pareciam essas fubicas que estamos acostumados a ver se arrastando entre os bondes que circulam devagar. Serão máquinas possantes de todas as cores, tamanhos e praticamente despedaçam o chão que na época vai ser coberto com um tal de asfalto.
Percebendo que o povo já ia se juntando para ouvi-lo, Pilombeta caprichou ainda mais na fala. Vendo que o seu sonho talvez lhe valesse uma boa premiação e a atenção de todos.
 – E os doidos? Você que estão acostumados apenas com o Casaca de Urubu, seu fraque bolorento e gestos absurdos dizendo que lutou na Guerra de Canudos e atirando pedras em todo mundo, ou ao engraçado Chagas dos Carneiros com sua idolatria pela volta do regime monárquico, arrastando pelos cabrestos seus três carneirinhos pintados de anilina: um azul-claro, um verde-claro e o outro cor-de-rosa. Berrando sandices de que rei bom era dom Pedro II, não se assustem com os doidos do futuro. E não são poucos, não.
– Andam com roupas estranhas sem paletós e alguns com calças curtas parecendo as das crianças a qual chamam de bermudas. Nos pés, nada dos calçados furados que o sapateiro mestre Arcanjo vive de vender aos quatro ventos. Não, a maioria usa uns troços alcunhados como tênis feitos de borracha. Uma Pandora.
       – Ah! E podem esquecer os cinematógrafos e os gramofones. A moda daqui há uns cem anos vai ser uma tal de televisão de alta-definição. Que nada mais são que telas menores de cinema a transmitir imagens que mudam o tempo todo, mais parecendo um daqueles palimpsestos do antigo Egito. Incrível mesmo é que essas geringonças são vendidas em lojas aqui no Centro mesmo e aos montes. Dizem até que cada casa possui várias ao mesmo tempo. Vejam se tem cabimento uma coisa dessas?!
– Agora, de lascar mesmo são os loucos varridos que andam com umas caixinhas parecidas com as carteiras de cigarros que compramos por aqui hoje. Andam com eles nas mãos berrando e gesticulando sozinhos, uns passando pelos outros discutindo sabe-se lá com quem. “Alô! Sou eu do meu celular. Onde você está? Vamos marcar nosso encontro para as 22 horas! Isso mesmo na Aldeota está bom...”. Dá para acreditar que em 2017 a Aldeota vai ter prédios maiores que a Coluna da Hora, que a Praça do Ferreira vai ser toda demolida, a cacimba aterrada e um tal de Cinema São Luiz vai ser erguido em 1958 para virar cineteatro em 2010?
A essa hora um mundaréu de gente já se apertava para ouvir os causos de Pilombeta. Estavam estupefados. Ninguém conseguia imaginar de como aquele louco falando de loucos conseguira retirar tantas potocas e baboseiras de sua cachola. E o pior é que o maluco ainda falou de mais um monte de coisas inimagináveis como Internet, relógios digitais, Fortaleza com dois milhões e meio de habitantes, que Rodolfo Teófilo e Quintino Cunha iriam virar nome de bairros. Por fim, foi tanta loucura aparente que não deu outra: o povo caiu em desabalada salva de palmas, gargalhadas e fogos de artifício.
Pronto! Aquilo foi o bastante para que Pilombeta saísse nos braços do povo. Nem bem passava de uma hora da tarde e parecia que o campeão já estava eleito. Dito e feito. À noite, depois da contagem dos votos não deu outra: Pilombeta, o potoqueiro do ano de 1920.
Coincidentemente, e por força do progresso, o Cajueiro Botador foi mandado ser derrubado pelo prefeito Godofredo Maciel naquele mesmo ano. Muitos foram os protestos, mas não houve jeito e lá se foi embora uma tradição cearense, causada pela insensibilidade política de nossos governantes. Em 1991, quando a Praça do Ferreira foi reurbanizada, o então prefeito da capital, Juraci Vieira de Magalhães, plantou no mesmo lugar um novo cajueiro em gesto simbólico. Hoje, o novo cajueiro é patrimônio tombado em cuja sua sombra descansa uma placa de bronze com os seguintes dizeres: “ Neste local existiu um frondoso cajueiro que, por frutificar o ano todo, era apelidado de Cajueiro Botador ou, por se realizarem, sob sua copa, cada 1º de abril, as eleições para maior potoqueiro do Ceará, era também chamado de Cajueiro da Mentira”.



[1] Diz Raimundo Girão em seu Geografia Estética de Fortaleza: “Era o cajueiro da mentira. Melhor, o suporte da urna em que se elegiam os mitômanos graduados todos os anos a primeiro de abril, considerado o dia nacional da potoca. À sua sombra, como um pálio, resguardava a mesa eleitoral que recebia os votos populares no mais animado e vero dos pleitos, tudo ornamentado de bandeirinhas de papel e agitado de foguetes de estouro”. Fonte: Otacílio de Azevedo in: Fortaleza Descalça, edições UFC, 1992.

8 comentários:

  1. Obrigado, Netto, por mais uma vez me abrir espaço no teu blog. É sempre bom amanhecer e ver um texto nosso sendo explicitado por mãos tão hábeis como as suas. Vou cuidar agora em compartilhar com minha rede de amigos para que possam ler sobre u fato tão histórico do nosso Ceará moleque. Túlio Monteiro.

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    1. O prazer é todo meu, Túlio. Parabéns pelo ótimo texto. Abração.

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  2. A CADA DIA SE SUPERANDO ESSE TÚLIO MONTEIRO, EM PROSAS E INVENTICES DE NOSSA COTIDIANA FORTALEZA!!! FÃ DEMAIS!!!

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    1. E VC SEMPRE MUITO GENTIL...OBRIGADO, GRANDE BAILARINA. TÚLIO.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Excelente texto. Falta-me cacife pra tecer comentários específicos.

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  5. Cada vez me surpreendendo com o meu amigo Túlio Monteiro. Dessa vez não poupou talento nas descrições vivas. Parabéns, poeta.

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  6. "Que mentira! Que lorota boa!" É isso aí, meu irmão... Gostei da artimanha em atravessar o tempo d nossos históricos perfis urbanos quebrando a ampulheta d tempo, c forma e vida bem mais crível, por esta interessante narrativa em q vc -lucidamente - expõe o rei sem roupa de nossa "evolução"...Raimundo Neto sabe tudo!Grata aos dois por esta
    releitura memorial. Márcia Matos


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