sexta-feira, 24 de março de 2017

"História Secreta de um Livro", de Milton Hatoum


Era um dos livros raros na tenda de um “bouquiniste” à margem do Sena. Em dois ou três sábados gelados daquele inverno distante, passei por lá para admirar as gravuras e a tipografia da edição de 1874. Em fevereiro, o livro sumiu.
Um outro fetiche parisiense era ficar na calçada de um pequeno restaurante da rive gauche e observar a comida fumegante, como se eu estivesse do lado de fora de um aquário aquecido; mas a fome pelo livro raro era mais voraz. Eu o havia lido numa reles edição de bolso, mais barata que um crepe na rue des Écoles, ali ao lado da Sorbonne Nouvelle; ou um croque-monsieur em qualquer padaria do décimo-segundo distrito, onde eu morava.
Um dia, depois de dar uma aula particular num subúrbio rico de Paris, vi meu vizinho brasileiro da rue d´Aligre sair do edifício com um livro apertado contra o peito. Parecia a edição de 1874, que imantava sonhos e desejos. Perguntei se o havia comprado num bouquiniste. Negou com uma expressão confusa e disse: Este livro tem uma história. Eu ia dizer que todo livro tinha uma história, mas o vizinho, esquivo, encerrou a conversa.
Numa noite de março – lembro que nevara nesse sábado e Paris estava branca e triste –, entrei num café do Faubourg Saint-Antoine e vi meu vizinho apoiado no balcão, lendo anotações numa caderneta. Sem mais nem menos, me convidou pra tomar um conhaque no seu “lar”. Eu, que morava num lugar apertado, me surpreendi com esse “lar”: uma ironia ou um eufemismo radical.
Ele dormia num quartinho com uma latrina, que a herança do orientalismo francês chamava de banheiro turco. As quatro paredes pareciam febris e suarentas de tanta nostalgia, e uma lâmpada solitária no teto iluminava as noites mais escuras da alma do expatriado.
Paris, para ele, era mais sombra que luz? Foi o que eu me indaguei ao observar o aposento opressivo. Me ofereceu conhaque, depois se serviu e entornou meio copo, sedento. Sentamos no carpete puído, nós dois cercados de jornais e revistas franceses. O livro raro estava sobre uma mesinha encostada a uma parede cheia de fotografias de amigos. Ele falou um pouco de cada um deles; por fim, movido pelo conhaque, contou com elã a história do livro. Impossível resumir numa crônica essa narrativa de êxtase.
Saí de lá às seis da manhã do domingo, e só tornei a revê-lo numa tarde de abril, quando as árvores esverdeavam, floridas. Ele parecia possuído pela alegria de um viajante que volta para casa. Ajudei-o a carregar uma sacola de lona até o metrô da Bastilha, de onde iria a Châtelet e depois ao aeroporto. Na despedida, perguntei se a sacola estava cheia de pedras parisienses.
“Jornais e revistas”, respondeu. “Selecionei mais de cem exemplares do Le Monde, Figaro e Libération e duas dúzias da Nouvelle Revue Française. É a minha bagagem. Tenho pouca roupa, nenhum objeto. Aquele livro está guardado num estojo, dentro desta maletinha... É o meu amuleto”.
Ri dessa loucura, e ele, talvez por contaminação, ou para não chorar de sua miséria, também riu. Esse rosto risonho no subterrâneo da Bastilha foi a última visão do meu vizinho.
O rosto dele foi borrado pelo tempo, mas não a história do livro. Trinta e cinco anos depois, minha editora francesa me enviou um pacote. O remetente era o ex- vizinho, e o endereço, parisiense: rua Charles Baudelaire, ali perto da rue d´Aligre. No fundo, voltara ao mesmo lugar.
Numa longa carta, rememorou nosso encontro de 1981 e agradeceu mais uma vez minha ajuda naquela tarde de abril. Recontou a história do livro raro, acrescentando detalhes e omitindo alguns, que eu recordava: omissões que atribuo à duvidosa ordem do tempo ou à inevitável desordem da memória. No fim da carta, disse que tinha me visto no Salão do Livro de Paris, em março de 2015.
“Éramos dois velhos... Você não me reconheceu, e eu não quis quebrar o encanto do esquecimento”.
Quando abri o pacote, vi com emoção o livro raro, e tão cobiçado. Era um convite sutil para que eu escrevesse a outra história desse livro: uma narrativa triste e tumultuada de um jovem brasileiro no exílio parisiense.

Publicado originalmente no Caderno 2 do Estadão (2017)


4 comentários:

  1. Sempre vou encontrar o Milton Hatoum por aqui?

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    1. Sempre é uma palavra complicada, assim como nunca, mas é possível.

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    2. Não sou escritor, muito menos literato, mas tenho um blog onde faço uns rabiscos.
      Ficaria muito grato com sua visita.
      Abraços!
      "feldades.blogs.sapo.pt"


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    3. OK, Felipe. Obrigado pelo toque e pela leitura também. Continue rabiscando "sempre". rsrs

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