quinta-feira, 23 de março de 2017

"O (Des) Mundo de Ana Miranda", apresentação de Raymundo Netto



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Chega-nos agora o título de estreia da, esperamos longeva, Coleção Ceará: autor e estudos críticos, organizada por Cintya Kelly Barroso Oliveira e Fernanda Maria Diniz da Silva que, em sua apresentação, confessam o projeto ser “movido pelo amor ao literário, pelo apreço por escritores nascidos no Ceará, pelo respeito ao que é fruto de um território com pouca divulgação crítica sobre a temática”. E vão além: “uma coletânea de textos investigativos que tematizassem a obra de um autor cearense vivo.”
É do conhecimento geral que interessar-se, ler, analisar, investigar, escrever e publicar sobre a literatura produzida no Ceará – para não falar em “literatura cearense” e evitar azedumes e torções de narizes – é um feito e tanto. Entretanto, promover tais estudos e análises de obras de autores cearenses VIVOS é tarefa digna de fazer o rebelde Sísifo se sentir em um playground.
O melhor do melhor é que esse projeto surge da iniciativa e interesse particular – infelizmente as universidades e os órgãos ditos de cultura e seus equipamentos públicos ainda contribuem muito pouco ou nada nesse propósito. Trata-se também de uma ação que soma-se a outras que temos conhecimento desde 2013, com a publicação de Escritores Cearenses: múltiplos olhares, seguida por Literatura em Debate: estudos sobre autores cearenses (2014), depois Ceará em Letras: entre o passado e o presente literário (2015) e Literatura no Ceará: diálogos interdisciplinares (2016). Nelas, podemos encontrar tanto autores do passado como os contemporâneos: Antônio Girão Barroso, Francisco Carvalho, Emília de Freitas, Filgueiras Lima, Patativa do Assaré, Horácio Dídimo, Linhares Filho, Klévisson Viana, Tércia Montenegro, Roberto Pontes, Adolfo Caminha, Pedro Lyra, Jáder de Carvalho, Mário da Silveira, Moreira Campos, Rachel de Queiroz, Arievaldo Viana, Gustavo Barroso, Fran Martins, Antônio Sales, José Alcides Pinto, Pedro Salgueiro, Eduardo Campos, entre muitos outros. Não resta dúvida: uma seleção de valor, porém, invisibilizada (ou quase) – das vezes, propositalmente – por motivos para nós incompreensíveis.
Abrindo a Coleção, recebemos Ana Miranda entre História e Ficções: estudos críticos, apontando 16 novos artigos sobre a escritora e ilustradora, contemplando: o comportamento feminino, a partir da ousada seleção de poemas de freiras e para freiras (por meio dos “freiráticos”, poetas cujas musas habitavam as sagradas celas)  em conventos portugueses e brasileiros, em especial no convento de Odivelas, nos séculos XVII e XVIII, em Que Seja em Segredo (1998); as características históricas, românticas, biográficas e intertextuais de Gonçalves Dias, ao olhar da apaixonada Feliciana, em Dias & Dias (2002); a construção do texto e da identidade, as referências comparativas com a obra Yuxin (2009), também de Ana, e o fantástico no infantojuvenil Menina Japinim (2015); os fenômenos migratórios, a xenofobia, os recursos estilísticos, a linguagem e a “consciência histórica” em Amrik (1997); o espaço simbólico do mundo e das relações humanas, as dualidades, o onírico e a circularidade existencial na poesia, em Prece a uma Aldeia Perdida (2004); a representação do espaço do Ceará, as suas multidimensionalidades e a valorização da arte e da cultura cearense em crônicas escolhidas em sua coluna no jornal O POVO; as características ou a inserção da produção da autora na literatura pós-moderna, a metalinguagem e a estruturação de um “novo romance brasileiro”; a condição e o comportamento da mulher na sociedade brasileira no século XVII, a partir da leitura das personagens (Maria, Anica e Bernardina) de Boca do Inferno (1989); o verbal e o pictórico, o intersemiótico, a ludicidade nos infantojuvenis, em Lig e o Gato de Rabo Complicado (2005); o “exílio”,  o sentimento de pertença, o enraizamento no espaço geográfico-afetivo e a busca e reconstrução de uma identidade no metaromance Semíramis (2014); a narrativa histórica (ficção versus história oficial) nos séculos XIX e XX, as temáticas e o discurso da produção literária feminina moderna e a imigração libanesa ao Brasil, a partir da narradora-personagem Amina de Amrik (1997); o entrelaçamento afetivo, as relações interdiscursivas entre a vida e a obra de Rachel de Queiroz e de Ana Miranda, à luz da semiótica greimasiana (ser/não-ser, parecer/não-parecer); o fenômeno da coerção dos paratextos (peritextos + epitextos) editoriais na literatura infantojuvenil, em Tomie: cerejeiras na noite (2006); a metaficção historiográfica, o parnaso e a Belle Époque na trajetória de vida e de morte de um singular poeta Augusto dos Anjos em A Última Quimera (1995) e o tempo-espaço, foco narrativo, estética, o cronotopo artístico-literário e o caráter crítico-revisional da “história tradicional” em O Retrato do Rei (1991), cujo cenário é a Guerra dos Emboabas, além da biografia, bibliografia, os desenhos, a linguagem, o processo criativo/pesquisa, o onírico, a imagética e a visão sobre o trabalho autoral nos mais diversos gêneros ficcionais, na poesia e enquanto biógrafa. Enfim, na perspectiva de que, como diz Ana, “nunca escrevemos o que queremos, escrevemos o que somos”, podemos imaginar que essa obra é um retrato da rainha, com toda a humildade, acolhimento e a grandeza de uma rainha, figura esta que teve uma evolução rápida e surpreendente no campo literário, sendo em sua primeira publicação, de chofre, aclamada “fenômeno”, o que provavelmente enciumou semideuses do Olimpo da indefinível e por vezes duvidosa literatura nacional. Que assim seja: Ana Miranda!
Ora, para aprendermos é essencial ter olhos e ouvidos abertos. A boca, de preferência, fechada, exceto se soubermos fazer perguntas e não tivermos medo de ouvir respostas. Ao lado da Ana, atenta o tempo inteiro no falar, no vestir, nos jeitos e trejeitos das gentes, colhedora sensível de afetos e sonhos, ledora obstinada, pensadora e imaginadora irrequieta, somos provocados a aprender, duvidar de nossas certezas e a maquinar outras dimensões de nosso próprio pensamento e, claro, a pensar a literatura. À artista, claro, não cumpre provar nada, e a nós?
Ao deter-me sobre os trabalhos que compõem essa coletânea, vivi novamente os sabores das primeiras leituras da vasta bibliografia de Ana, do reconhecimento de uma sua voz (com Desmundo), dos prazeres, das angústias, das experiências, alegrias e saudades. Aqui, algumas de minhas percepções, em meio à urdidura bem feita, a metodologia e semiótica empregadas na elaboração dos artigos, passaram a ter outras denominações, pois a atenção se volta a elementos que muitas vezes são imperceptíveis ou passam à margem do leitor comum (refiro-me àquele que lê por fruição). O que me fez recordar: enquanto leitor, editor e militante na divulgação da literatura produzida em nosso estado – o escritor neste momento dorme – é impossível não lamentar a aparente inexistência ou marginalidade em nossa sociedade das qualificadas, contudo controversas e polêmicas, crítica e historiografia literárias.
Daí, uma grande contribuição que percebo nesse projeto é o fomento à produção e a consolidação dessa crítica e historiografia, exercícios fundamentais de análise – ciente de que, como afirma Massaud Moisés,  “analisar não é criticar”, mas “criticar sempre implica analisar” –, interpretação, registro e investigação histórica e sociocultural do discurso literário, quase uma quimera, sabido que muitos desses agentes – por vezes considerados vozes indesejadas – se foram com o fim dos suplementos literários, com a predominância quase intransigente da superficialidade de resenhas de amigos e da imprensa (muitas vezes sem leitura das obras), com a submissão de críticos aparentemente “respeitáveis e especializados” a se curvarem reverenciosamente à necessidade de impulsionar as vendas editoriais (e são bem remunerados por isso), entre outros aspectos. Na lista dos cearenses indispensáveis nesse território, com maior ou menor intensidade: Araripe Jr, Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Guilherme Studart (o barão), Dolor Barreira, Pedro de Queiroz, João Clímaco Bezerra, Aluízio Medeiros, Braga Montenegro, Mozart Soriano Aderaldo, Abelardo Montenegro, Otacílio Colares, F.S. Nascimento, Batista de Lima, Dimas Macedo, Nilto Maciel e Sânzio de Azevedo, este, certamente, um dos maiores e mais honestos historiadores de nossa atualidade.
Newton Gonçalves, na apresentação do livro-aula A Estrutura Desmontada (UFC/Secult, 2009), de F.S. Nascimento, fala sobre dois tipos de crítica: a crítica-arte e a crítica ciência – cita também a “crítica de elogios mútuos” e de “desrespeito recíproco”, ambas de caráter provinciano. Parte-se do princípio que a literatura, esse extenso tecido verbal – mais para “colcha de retalhos” –, enquanto arte, não promove apenas deleite e fruição, mas também provoca reflexão e transformações, além de registrar costumes, culturas, ideologias, convicções etc., o que a coloca no patamar de ferramenta inevitável na elaboração da arquitetura de uma sociedade melhor. Sim, a arte é, por natureza, subjetiva, e defende o seu direito de sê-lo, enquanto a ciência exige critérios, metodologias, objetividade e imparcialidade. Como o erro é um dos frutos mais danosos na nossa pouca prática historiográfica, pois passa de geração a geração na qualidade de “verdade”, tememos que os amantes diletantes dessa literatura, não possuidores dos devidos cuidados, critérios e senso de desconfiança e métodos de investigação, acabem por divulgar monstruosos e, misteriosamente incorrigíveis, equívocos. Por isso, ter a universidade a missão de formar esses profissionais e provocar estudos e pesquisas com a qualidade que eles merecem.
Afinal, diante de uma desmedida prateleira de conteúdos, informações e de milhares e milhares de títulos, quando o mercado editorial cada vez mais assume um papel industrial, na busca de produtos de consumo, de tendências, não importando o seu valor literário – eles denominam essa “literatura para poucos” de “alta literatura” – mas a sua capacidade de venda, de mainstream, nos parece emergente que tenhamos aqueles que se voltem para as entranhas dessa produção literária, que pode até ser vendável ou não, nos seus aspectos mais íntimos, com a capacidade de contextualizá-la e de apontar os elementos que existem de melhor ou de pior, qualificando a sua leitura e olhar, seja em que suporte for, por meio de jornais, revistas, livros, blogues, redes sociais etc.
Assim, a obra que agora temos em mãos, pela diversidade de olhares, de leituras, de reflexões e contextualizações merece aplauso, a atenção e o apoio de todos nós leitores e atores que compomos as cadeias criativa e produtiva do livro (escritores, pesquisadores, editores, ilustradores, gráficos etc.) e mediadora da leitura. Que venham novas coletâneas, que provoquem pasmos e curiosidades. E mais: que arrebatem nossos autores e obras da perversa escuridão que só poderá ser eliminada à luz da inteligência, honestidade e dedicação, coisas que por aqui, até então, somos poucos e avaros.
Urbi et orbi.


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