quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Literatura Suicida: "Portas Fechadas", de Raymundo Netto, em Os Acangapebas


VIVER! Ainda é a melhor escolha.
10 de setembro
Dia Mundial de Prevenção do Suicídio

lasciate ogni speranza, voi ch'entrate
(Dante Alighieri, A Divina Comédia)

Para o amigo Manuel Bulcão

Todo mundo sempre me dizia: quem tem depressão, não pode deixar as portas fechadas!
Não entendia o porquê das portas, mas sabia, sim, o que era depressão. Uma tristeza sem fim, sem razão, e, ao mesmo tempo, com todas elas. Uma sensação de vazio imenso, a angústia, o coração apertado, uma vontade sofrida de chorar... Aliás, certa, certa, só mesmo essa vontade, quase vergonhosa, de chorar.
Geralmente, minha casa estava escura. Trancava as portas e as janelas, não queria ver ninguém. Era doído mostrar um sorriso de aparência, fingir atenção ao ouvir as medíocres histórias do dia a dia de todo o mundo, assisti-los a rir de piadas velhas ou a me contar de suas esperanças e crenças e, o pior: vê-los a zombar das próprias desgraças!
Televisão ou rádio, eu nem ligava. Ouvia música, sim, mas sempre, sempre, as percebia tão tristes quanto eu.
No mais, sempre me diziam: Olhe, quem tem depressão nunca pode deixar as portas fechadas, hein?!
Pus a fazer assim: não as fechavas mais, contudo, também não aparecia mais à porta, para que não me vissem, não me incomodassem... esquecessem de mim! Então, quando os mendigos ou carteiros batiam palmas no portão, eu ficava imóvel, silenciado, olhando pela fresta da basculante até eles se irem de vez.
Eu escrevia. E escrevia sempre, seja o que fosse, escrevia. A cabeça sempre ocupada, cheia de pensamentos a se acotovelarem, não me deixando dormir. Assim, varava as madrugadas e escrevia. Os meus dedos cumpriam por mim aquelas prometidas caminhadas pela praça ou à beira-mar, recomendadas pelos amigos, como terapia. Eles já achavam: precisava de terapia.
Em minha mente se passavam todos os tipos de acontecimentos, porém, na minha vida mesmo, sentia que nada acontecia; nada me suportava a vida!
Sentado diante do computador, lembrava momentos passados, rostos quase esquecidos, antigas promessas, dentre elas a maior, a da felicidade, feita ainda à juventude, que se foi sem que me desse conta. Não acreditava um dia envelhecer. As pessoas diziam: “mas você não tem nem quarenta anos!” Eu nem que acreditava...
Olhava a caixa de mensagens de cinco em cinco minutos: nada! Ficava pensando que logo, logo, alguém escreveria falando de seus planos e eu, com ele, sonharia, desfiando o sonho alheio, ponto a ponto, até cansá-lo e tirar-lhe o gosto. Eu mesmo, fazia tempo, não colecionava sonhos, não esperava por nada nem por ninguém. Eu não acreditava mais.
Nisso, de repente, um vento entrou e fechou-me a porta da sala. A casa escura!
Lembrei: quem tem depressão não pode deixar as portas fechadas!
Senti medo. O que aconteceria, então? Vozes frequentes ao pé do ouvido mudaram o discurso: ele morreu? ele morreu? ele morreeeu... Uma sombra pesada em tom de cinza pairou sobre minha cabeça. O frio desceu-me a nuca e fiquei em silêncio, atônito, a esperar, mas nada aconteceu. Na sala, tudo parecia olhar para mim: os livros, os quadros, as prateleiras, as canecas... até o gato que numa apatia incômoda não ria nunca, também me fitava... eles sabiam... mas nada aconteceu!
Fui ao banheiro, olhei para o espelho, e não era eu quem estava lá. A garganta apertava-me, e eu chorei, chorei, chorei, abri as torneiras... mas nada aconteceu. Nada acontece nunca e nunca mais abri as portas nem os olhos, trancado para sempre na minha mais absoluta solidão.


Portas Fechadas, em Os Acangapebas, de Raymundo Netto (2012)


7 comentários:

  1. Gosto demais desse livro. Sempre que releio, tenho a sensação de estar andando pelas comunidades que visito, conversando com uns e outros... Incrível como você consegue descrever a dor e o amor, é claro, dos verdadeiros protagonistas dessa cidade que pode ser qualquer uma... Abraço! E viva a vida!

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  2. Viva a vida, Rejane. Muito obrigado por esse depoimento maravilhoso. Ganhei a noite. Abração.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Nunca havia lido algo tao parecido com o que sinto nesses últimos meses...
    E vc, caro Raimundo, a fez de uma forma espetacular descrevendo o pesar com leveza.
    Quero o livro, onde compro?

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    1. Oi, Brenda. O livro é "Os Acangapebas", de contos. Por enquanto só à venda na livraria do jornal O POVO. Parece-me que a R$ 20,00.

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  5. Ja estou lendo! Arelano Luiz me deu de presente! Estou adorando, MT bom...

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