Foto: Kiko Silva
Alô, alô, Marciano Lopes, aqui quem fala
é da Terra. Sou o Raymundo, aquele que quando o encontrava nas ruas do Centro
ou no Bar do Pedim parava para compartilhar as dores comuns à desmemória coletiva
desta cidade, talvez a sua amante mais fervorosa e completamente infiel.
Você, com sua voz arranhada de vitrola, não
era dado a simpatias, avaro em sorrisos e gestos. Gostava de se dizer
jornalista, entretanto, mal contava das histórias sobre os feitos do passado –
e tinha muitos nas diversas folhas cearenses –, a não ser quando sob pressão e generosa
paciência.
Quando lancei meu primeiro livro, em
2005, era seu leitor. Adorava as suas crônicas de menino, aquelas “scenas
d’antanho tiradas do baú”, assistindo aos espetáculos das vitrines das lojas
chiques, dizendo dos costumes, da beleza dos cinemas, das fotografias
amarelecidas e dos reclames. Não sei se ainda lembra, mas fui ao seu
antiquário, disse exatamente isso enquanto me apresentava, indiferente ao meu
entusiasmo, a diversas peças raras de mobiliário. Entretanto, ao saber que estava
ali para convidá-lo para um lançamento de livro, perdeu a inspiração e foi
categórico: “Não vou a lançamentos. Livros, tenho os meus. Não dá dinheiro.
Maior bobagem escrever livros.”
Eu, que tinha adquirido alguns outros
títulos da ABC – editora do admirável ipuense Maurício Xerez –, aproveitei e
perguntei se ainda tinha algum exemplar do Royal
Briar. Respondeu-me “Não, acabou-se tudo!” Quando, repentino, alargou a vista
sempre espremida: “Você não quer publicar meu livro também, não?”
Passaram-se os anos, amigo Marciano, e
eu continuei a encontrá-lo ao acaso. Num desses encontros, em meio a belas
manecas, me transmitiu um ensinamento: “Não importa apenas que falem sobre a
história da cidade, essa história tem que ser verdadeira, pois daqui a alguns
anos, quando pesquisarem nos jornais, acreditarão que aquele monte de asneiras
é verdade!” Assim, você, que nem gostava muito de aparecer em fotos ou em TV, nem
de agradar a ninguém, recebeu meu convite para participar de uma mesa de
cronistas da cidade que criei para a Bienal do Livro, em pleno aniversário de Fortaleza. Porém, negou-se. “Ia não. Fazer o quê lá?”
Também se negaram Airton Monte, Christiano Câmara e Nirez. Aceitaram: Narcélio
Limaverde, Zenilo Almada e o Ary Bezerra Leite.
Mesmo diante dos descasos para com este
amigo, e deixando para lá umas piadinhas ácidas que eram bem de seu feitio, estimulei
Albanisa Dummar, editora, a apresentar o seu Royal Briar em concurso de publicação, no qual, para nossa alegria,
talvez mais minha do que sua, ele foi contemplado, sendo logo editado e
distribuído pelo Armazém da Cultura, assegurando, ainda hoje, mais agora com a
sua distância, que os leitores também amantes da “lourinha” possam encontrá-la
pintada pelos seus olhos. Eu, final e merecidamente, confesse, após tantos
anos, ganhei a edição original (1988) de seu Royal Briar, além da nova (2012) e belíssima edição do Armazém.
Hoje, quando soube de mais essa
desfeita, essa partida silenciosa em plena noite dourada, lembrei-me, com
amargo gostinho de “nunca mais”, daquelas piadinhas infames, da pergunta nunca
respondida sobre a radionovela da Assunção, dos seus rastros que trago na
estante.
Pois é, Marciano, “a crise tá virando zona: cada vez mais down o high society!”
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