terça-feira, 13 de outubro de 2015

"As Duras Penas", de Audifax Rios

Publicado originalmente em 23 de janeiro de 2015

Nunca pensei que o sumiço de uma caneta causasse tão grande vexame, mexesse com tanta gente, gerasse desconfiança, provocasse conclusões precipitadas, motivasse tristeza e trouxesse a velha alegria de volta. Depois do episódio maligno, tudo divino no quartel de Quirino. Deu-se que o cabrito Erle, ao arriscar um ponto na rifa do sacristão, esqueceu a esferográfica Parker a qual dormiu em palácio sob a guarda do camelô da liturgia. E o dono de tal preciosidade passou a noite inteira em claro a contar bodinhos.
Tal peça fazia parte de um estojo ocupado ainda por uma caneta-tinteiro com bomba de borracha e uma lapiseira. Tudo da marca Parker 51, o que havia de melhor e mais luxuoso no mercado. Depois é que veio a série 61 e a grife predominou até a chegada da Mont Blanc. Abaixo delas, Sheaffer e Compactor, que, diga-se, não faziam vergonha.
No meu tempo de ginásio dois objetos da moda nivelavam a posição econômica e social: relógios e canetas. Os relógios caros ostentavam as marcas Mido, Cartier, Rolex, Omega, Pateck-Philliphe. Intermediários: Technos, Mondaine, Classic. E na rabada da fila classificatória, o mais peba de todos: Roscoff, sinônimo de ilegitimidade. Já dizia o Zé Lisboa, disk-jockey da Rádio Iracema, “relógio que atrasa, não adianta, é Roscoff”. Maldavam até ser fabricado no Juazeiro do meu Padim. E ainda haviam os japoneses Seiko e Orient invadindo um mercado nitidamente suíço. Tinham mostrador digital à prova d’água e de choque e aportaram quando do naufrágio de um navio que encharcou o mercado.
Pois bem, com as canetas acontecia o mesmo. As últimas da lista de valor traziam as marcas Skater, Cross e Rotary. Antes do advento das canetas-tinteiro eram comuns as penas de aço que se mergulhavam nos frascos (azul lavável, permanente, azul-preto, preto e ainda vermelho e verde) da conhecida marca Quink ou, uma mais ordinária, Jacaré. Eram usadas nas repartições públicas, escolas, redações de jornais, escritórios de contabilidade, gabinetes de advogados ou pedantes intelectuais. Sim, e também pelos maestros das filarmônicas nas feituras de partituras, verdadeiras obras de arte. Naquele tempo praticava-se a caligrafia vertical, não mais com cálamos de bambu ou penas de pato, uma mão na roda. O talhe entre o bico e o orifício onde ficava a tinta, quando flexionado dava a real largura das hastes das letras e das notas musicais. Caracteres capitulares e monogramas; sustenidos e bemóis, claves e colcheias.
No cartório do meu pai havia um tinteiro de chumbo, presente do padre-poeta Antonio Thomaz ao tabelião. Tinha o formato de um pássaro pousado sobre um folha onde se escondia o depósito de tinta. A curvatura da folha era o espaço para o repouso da pena de cabo trabalhado com fitilhos coloridos bordando gregas e as iniciais ASR de Antonio Sales Rios, artesanato de presidiário. Achava que tais valores engrandeciam a caligrafia rebuscada do notário assentada nos imensos livros de registros e, por extensão, as filigranadas letras dos escreventes Antonio Enéas, Batista Lafayette, José Abranches e o mano Dion.
Minha primeira caneta-tinteiro foi uma Skater marron com listras em laranja, imitação de um modelo popular da Parker. Em Sobral, mandei gravar meu complicado nome sobre seu corpo, o que, pra variar, saiu errado. Era o ano de 1958 e cursávamos a primeira série ginasial. E entre os colegas havia um aluno muito habilidoso que ganhava um dinheirinho consertando canetas quebradas, enguiçadas, entupidas. Estênio Lima ou Chicão do Guterres, o nome desse um. Dos mais velhos da turma, o bamba em álgebra, hipocondríaco de constante lenço no pescoço e caixeiro da loja de tecidos do tio Mozart Cavalcante. Onde demorava um tempão para fechar, na escuridão, as seis portas de madeira, cada qual com inúmeras trancas, taramelas e cunhas. Além de vedar com molambos a brecha do chão para evitar um possível incêndio provocado por alguma bagana de cigarro perdida. Ah, sim, o Chicão era agnóstico, muito raro naqueles tempos de fervorosa religiosidade.
Minha irmã primogênita e professora de desenho e trabalhos manuais esnobava com duas canetas folheadas a ouro, adquiridas por uma bagatela junto a uma amiga viúva, Dona Abigail. Objetos testemunhas maiores de seu casamento com o abastado proprietário José Leopércio. Acredito que tais canetas só hajam escrito, em toda a vida, os nomes dos dois pombinhos nos registros paroquiais e cartoriais do matrimônio de conveniência, os nubentes em vias de cair as penas descoloridas.
E para acabar com a farra da garatuja chegou a devastadora esferográfica Bic escrita fina com esfera de tungstênio, arrastando concorrentes similares sem medo de perder espaço. Vieram para ficar. Perdia-se a própria ou levava-se a do outro sem prejuízo para ambos. A coisa mais prática que inventaram depois da calça jeans, a camiseta de malha e a sandália japonesa. Leve, barata, durável, descartável. Como deviam ser as fantasias que deitavam no papel ou no papiro. Desde que Campollion descobriu a pedra de Roseta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário