Publicado originalmente em 23 de
janeiro de 2015
Nunca pensei que o sumiço de uma
caneta causasse tão grande vexame, mexesse com tanta gente, gerasse
desconfiança, provocasse conclusões precipitadas, motivasse tristeza e
trouxesse a velha alegria de volta. Depois do episódio maligno, tudo divino no
quartel de Quirino. Deu-se que o cabrito Erle, ao arriscar um ponto na rifa do
sacristão, esqueceu a esferográfica Parker
a qual dormiu em palácio sob a guarda do camelô da liturgia. E o dono de tal
preciosidade passou a noite inteira em claro a contar bodinhos.
Tal peça fazia parte de um estojo
ocupado ainda por uma caneta-tinteiro com bomba de borracha e uma lapiseira.
Tudo da marca Parker 51, o que havia
de melhor e mais luxuoso no mercado. Depois é que veio a série 61 e a grife
predominou até a chegada da Mont Blanc.
Abaixo delas, Sheaffer e Compactor, que, diga-se, não faziam
vergonha.
No meu tempo de ginásio dois
objetos da moda nivelavam a posição econômica e social: relógios e canetas. Os
relógios caros ostentavam as marcas Mido,
Cartier, Rolex, Omega, Pateck-Philliphe. Intermediários: Technos, Mondaine, Classic. E na
rabada da fila classificatória, o mais peba de todos: Roscoff, sinônimo de ilegitimidade. Já dizia o Zé Lisboa,
disk-jockey da Rádio Iracema, “relógio que atrasa, não adianta, é Roscoff”.
Maldavam até ser fabricado no Juazeiro do meu Padim. E ainda haviam os
japoneses Seiko e Orient invadindo um mercado nitidamente
suíço. Tinham mostrador digital à prova d’água e de choque e aportaram quando
do naufrágio de um navio que encharcou o mercado.
Pois bem, com as canetas
acontecia o mesmo. As últimas da lista de valor traziam as marcas Skater, Cross e Rotary. Antes do
advento das canetas-tinteiro eram comuns as penas de aço que se mergulhavam nos
frascos (azul lavável, permanente, azul-preto, preto e ainda vermelho e verde)
da conhecida marca Quink ou, uma mais
ordinária, Jacaré. Eram usadas nas
repartições públicas, escolas, redações de jornais, escritórios de
contabilidade, gabinetes de advogados ou pedantes intelectuais. Sim, e também
pelos maestros das filarmônicas nas feituras de partituras, verdadeiras obras
de arte. Naquele tempo praticava-se a caligrafia vertical, não mais com cálamos
de bambu ou penas de pato, uma mão na roda. O talhe entre o bico e o orifício
onde ficava a tinta, quando flexionado dava a real largura das hastes das
letras e das notas musicais. Caracteres capitulares e monogramas; sustenidos e
bemóis, claves e colcheias.
No cartório do meu pai havia um
tinteiro de chumbo, presente do padre-poeta Antonio Thomaz ao tabelião. Tinha o
formato de um pássaro pousado sobre um folha onde se escondia o depósito de
tinta. A curvatura da folha era o espaço para o repouso da pena de cabo
trabalhado com fitilhos coloridos bordando gregas e as iniciais ASR de Antonio Sales Rios, artesanato de
presidiário. Achava que tais valores engrandeciam a caligrafia rebuscada do
notário assentada nos imensos livros de registros e, por extensão, as
filigranadas letras dos escreventes Antonio Enéas, Batista Lafayette, José
Abranches e o mano Dion.
Minha primeira caneta-tinteiro
foi uma Skater marron com listras em
laranja, imitação de um modelo popular da Parker.
Em Sobral, mandei gravar meu complicado nome sobre seu corpo, o que, pra
variar, saiu errado. Era o ano de 1958 e cursávamos a primeira série ginasial.
E entre os colegas havia um aluno muito habilidoso que ganhava um dinheirinho
consertando canetas quebradas, enguiçadas, entupidas. Estênio Lima ou Chicão do
Guterres, o nome desse um. Dos mais velhos da turma, o bamba em álgebra,
hipocondríaco de constante lenço no pescoço e caixeiro da loja de tecidos do
tio Mozart Cavalcante. Onde demorava um tempão para fechar, na escuridão, as
seis portas de madeira, cada qual com inúmeras trancas, taramelas e cunhas.
Além de vedar com molambos a brecha do chão para evitar um possível incêndio
provocado por alguma bagana de cigarro perdida. Ah, sim, o Chicão era
agnóstico, muito raro naqueles tempos de fervorosa religiosidade.
Minha irmã primogênita e
professora de desenho e trabalhos manuais esnobava com duas canetas folheadas a
ouro, adquiridas por uma bagatela junto a uma amiga viúva, Dona Abigail.
Objetos testemunhas maiores de seu casamento com o abastado proprietário José
Leopércio. Acredito que tais canetas só hajam escrito, em toda a vida, os nomes
dos dois pombinhos nos registros paroquiais e cartoriais do matrimônio de
conveniência, os nubentes em vias de cair as penas descoloridas.
E para acabar com a farra da
garatuja chegou a devastadora esferográfica Bic
escrita fina com esfera de tungstênio, arrastando concorrentes similares
sem medo de perder espaço. Vieram para ficar. Perdia-se a própria ou levava-se
a do outro sem prejuízo para ambos. A coisa mais prática que inventaram depois
da calça jeans, a camiseta de malha e a sandália japonesa. Leve, barata,
durável, descartável. Como deviam ser as fantasias que deitavam no papel ou no
papiro. Desde que Campollion descobriu a pedra de Roseta.
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