sábado, 6 de setembro de 2014

"A Tormenta", de Raymundo Netto, para O POVO


Apesar de nos ter sido emprestada há milhões de anos, tão limitados e incompetentes que somos, ainda não conseguimos tomar posse da vida.
O ser humano já é incompreensível até por definição, quando diverge daquilo que é, o ser propriamente dito, concebido pela natureza involuntária, talvez pela transa irresponsável de estrelas num orgasmo da via láctea, daquilo que o faz SER humano, em seu caráter integral, consciente e merecido, de quem é pelo que se faz ser.
Viver é tão único e tão solitário que é difícil mensurar o quanto perdemos, ou mesmo o que ganhamos nessa conjunção coletiva, sinuca de alteridades, na complexidade de nossa relação com o que está além de nossa individualidade, de nossos desejos, de nosso ser gratuito, tão desconhecido de nós, mas, certamente, íntimo de todos e qualquer um.
O mundo é um campo minado, e não uma colina de flores do campo, e daí exige a perda da ingenuidade, a atenção redobrada, a sensibilidade e a noção exata do peso de nossa pisada.
No correr da história, e da histeria, rumamos culturalmente num saco de gatos universal, apoteótico, com destino certo ao espetáculo, ao grande teatro do absurdo, cuja nossa audiência útil amuralha o império de forças que tem como argumento, principalmente nos tempos modernos, os caríssimos anúncios e a publicidade chula, criados por agências de pseudointelectuais devoradoradores de long-necks e drinks coloridos. A máquina não para, movida sempre pela intensa e cruel brutalidade financeira, causa maior, quase sagrada, dos espíritos opressores da humanidade, insaciáveis porcos comedores de bacon, genocidas, fascistas e admirados postadores de selfies europeus, levantando taças de vinhos, cor de sangue brasileiro, ou abrindo os braços com manjadas estátuas, pontes e postes dignos de gerar a inveja nos tão medíocres quanto eles.
O fogo do poder e da ambição se alastra nos intestinos magnânimos desses porcos egoístas, corroendo-lhes as vísceras e deixando-lhes em cirróticas cinzas o lúmen de sua alma original. Resta-lhes, para disfarçar o carcoma, cobrir-se com roupas caras, banhar-se com perfumes franceses, andar em carros do ano, comprar toda bobagem ultramoderna, dar de presente garrafas de bebidas envelhecidas para parceiros (leia-se "interesseiros") com quem divide suas aparentes vitórias e conquistas. À noite, o fantasma da ansiedade e do medo não o deixam dormir, ou o acompanham na hemorroida doída ou no desdém  indesejado do(a) companheiro(a) de leito.
Para suportar a dor dessa vergonha inconfessável, adoça a boca com o álcool, entope o sangue com drogas, consome sapatos e acessórios no shopping mais próximo, mas nada, simplesmente nada, afasta dele o medo de perder tudo aquilo que ele bem sabe ser apenas uma farsa.
Porém, mesmo assim, somos nós quem os alimentamos, os incentivamos, permitimos que esses porcos dominem o mundo, subam as rampas, se vistam em togas, nos representem, ganhem voz aos microfones, decidam a nossa vida, gastem nosso dinheiro com armas, com projetos de fachada, náufragos e megalômanos, em negociações vergonhosas. Permitimos que eles decidam os destinos de nossas crianças, que deixem nossos velhos ao relento, que esqueçam das populações mais pobres e sentenciadas pelo não-poder, que cultivem um celeiro de segregação, de injustiça, de desigualdade, de gente que nunca vai saber até onde poderia chegar se tivesse alguma oportunidade. Diante de tão opressora e impassível realidade, sofre quem ainda se indigna com o sofrimento alheio, quem é sensível às possibilidades do ser e do mundo, quem muito gostaria de crer na possibilidade de algo diferente.
Escolher nos parece sempre tão difícil... Mas, sinceramente, o que queremos mudar se nem mesmo aprendemos a colocar o lixo na lixeira?



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