domingo, 14 de setembro de 2014

"...E o Vento vai Levando", de Audifax Rios, para O POVO

O mesmo ventinho avexado que provocava os redemoinhos da infância naqueles secos meses nos meus cafundós, volta agora remexendo, não folhas secas, mas sacos plásticos, jornais velhos, santinhos de políticos e entulhos de construções. Em setembro de 1958, e lá se vão pra lá de meio século, no auge da seca braba que castigava o Nordeste brasileiro, o Ná (onde ele mora?) mal acabava de varrer a folharada amarela do tamarineiro do mercado no chão do Big Bar e o vento teimoso trazia a sujeira de volta e assim o colega de ginásio mal tinha tempo de cumprir suas obrigações escolares já que os biritinhas contumazes tomavam-lhe outra parte do precioso tempo.
Por conta deste destempero temporal mudei até o foco do ateliê pra dentro da casa, dispensando luz natural e a fresca da maresia iracemal. É que o teimoso ventinho resolveu construir seus torvelinhos em minha área de trabalho, assentando a poeira sobre o branco do papel prestes a registrar a última danação. De sobra, toda sorte de lixo encantoado pelos vãos das paredes onde já demoravam pedaços de madeira, caixotes, livros e a reserva do almanaque querido. Vai chegar o dia em que precisarei usar máscara no nariz e vedar olhos e ouvidos e a obra de arte vai sair sem sabor nem visibilidade, ouviram bem?
Esta poeira é certamente coisa do capeta como diziam os mais velhos e sábios, asseguravam que se a gente desobedecesse os superiores iríamos pretos pro inferno e os “ridimunhos” nada mais eram que o transporte seguro desta fatal travessia.
Mas levantemos, sacudimos a poeira como na canção, ou então escolhemos um papel bege ou da cor de fuligem ou de monóxido de carbono, o pó pode ser usado como crayon ou fousain e poderemos até obter um bom resultado com estes improvisados instrumentos, das tripas coração.
E vem à lembrança outro pó, muito em voga, as cinzas das cremações. Ultimamente, dois amigos preferiram navegar a última viagem através de aprazíveis ambientes, Airton Monte na praia de Iracema, Lustosa da Costa no rio Acaraú. O que me faz lembrar, também, do destino das cinzas do mestre Rubem Braga, que não chegaram a ser sepultadas no leito do Itapemirim pela incompetência (ou ignorância, ou mesmo inocência) da empregada doméstica que empregou o pó dos ossos do cronista como tempero diário do almoço da família. Os Braga do Cachoeiro comeram, literalmente, o grande garanhão.
Enquanto isso vamos comendo poeira até que a crise passe, estamos perdendo tempo por via do perfeccionismo técnico em vez de misturar o pó com as bisnagas coloridas, quem sabe apareça até um cromatismo inesperado e salvador. Comer poeira, aliás, passou a ser eufemismo desde que plantaram grama nos campos de futebol de várzea e de praia (futebol de poeira era o nome oficializado) e mesmo assim a nossa seleção comeu foi o pó da desastrada derrota, junto ao pão que o diabo amassou.
A propósito, os políticos estão aí prometendo distribuir colírio para todos, os eleitores passarão a ver um palmo adiante do nariz e é aí onde corre o perigo. Melhor para os candidatos seria continuar com a cegueira provisória ou definitiva para tudo ficar como dantes, terra de cego com rei caolho. E nesta terra de óticas mil e grossos óculos fundo de garrafa, bifocais e outras novidades, a luz que devia clarear as mentes faz gerar lentes e lucros nos cofres dos intermediários entre o clarão e as trevas.
E a ventania está levando o assunto pra outro rumo, contudo argueiro ou cisco no olho lembra visão que é nome de revista, loja, produtora de cartazes, agência de propaganda. Os políticos se rotulam com esta palavrinha mágica e antecipam o futuro e o panorama global e a felicidade geral da nação, quiçá o paraíso iluminado ou a escuridão dos quintos dos infernos.
E voltando aos brandos tempos de outrora, naquele ontem até que sopravam lufadas agradáveis. Havia o ventinho da praça do Ferreira que mereceu até música do compositor Gordurinha, aragemzinha safada que levantava a barra da farda das meninas da Escola Normal até que a miss Mary Quant inventou a minissaia para destronar o apelido de Esquina do Pecado, a velha Broadway, doce sacrilégio. Mais brando que a poeira escondida debaixo do tapete da Petrobras.

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