sábado, 27 de setembro de 2014

"De Pedra", de Raymundo Netto para O POVO


Mesmo não suportando a loucura da mulher, vê-la partir lhe seria impossível.
Uma noite, durante angustioso jantar, a dopou. Tomou-a adormecida e a levou para o mato, quase em frente à lagoa, ainda visível da janela de sua casa. Lá chegando, a amarrou rente a um tronco estreito de árvore, onde previamente havia preparado baldes com água, areia e cimento.
Desacordada, ela respirava suavemente, deixando transparecer uma ar de ternura no rosto, enquanto ele punha e moldava sobre seu corpo a massa ainda molhada do cimento. Começou pelos pés e, aos poucos, as pernas, o tronco, os seios, os braços, até, finalmente, cobrir-lhe toda a cabeça.
Amanheceu. O sol o encontrou sentado no capim com uma pequena espátula à mão e olheiras marcadas de despedidas, enquanto iluminava e aquecia a figura tosca daquela mulher. Foi quando teve a impressão de ouvir dela um soluço abafado, quase como um estalo.
Todos os dias, à janela, seria a primeira imagem que veria ao acordar. Tinha pesadelos. Ouvia os seus desaforos, imaginava que ela lá não mais estaria, que mesmo em pedra pudesse lhe escapar, se lançando nas águas lodosas da lagoa. Mas não. Continuava ali, como encantada, a seu alcance, aquecida para sempre em seu amor. E assim permaneceu durante meses.
A ausência dela era quase despercebida. Trabalhava em casa, poucos amigos, filha única de mãe idosa. Quando muito, um telefonema — "Ela não está. Quer deixar recado?" — Não queria. Sabia que a ingrata não retornaria.
Aos finais de tarde, aguardava a noite ao lado da mulher. Falava sobre seus dias, contava-lhe novidades, confidenciava-lhe a falta que lhe fazia e, por fim, numa loucura própria e sincera dos amantes, a cobria de beijos chorosos, se agarrando àquele corpo frio, áspero e inerte.
Numa noite quente, ele acordou e viu ao pé de sua cama a mulher de pedra. Em silêncio, e através dos olhos nus e cinzentos, parecia mirá-lo, até jogar-se sobre ele e, com as mãos, tomar-lhe fortemente o pescoço e o ar. Valendo-se do vagar desajeitado da estátua, ele conseguiu, com esforço, escapar-lhe. Ainda torpe e surpreso, pegou uma marreta e golpeou seu abdome. O corpo começou a rachar, abrir-se de meio a meio. "O que foi que eu fiz, meu amor?", repetia. A estátua fez-se em pedaços e de seu interior apenas um grito moribundo, aterrorizante, de uma agonia jamais ouvido igual.

Ele, abalado, jogou-se sobre os escombros, a procurar a mulher, qualquer pedaço dela, mas nada encontrou. Saiu gritando, com restos de entulho nas mãos, e jogou-se na lagoa, pondo-se no fundo da lama com o peso de sua própria consciência e da imagem perdida de sua mulher amada.

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