quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Inéditos de "Os Acangapebas" I: Tentação, de Raymundo Netto para O POVO (13.11)


"Você é um velho. Um velho!" Assim o espelho do banheiro o saudava todas as manhãs. Mas isso nem de longe seria sua maior aflição. Logo em seguida, sua esposa sairia, linda e fresca, do chuveiro, a beijocar-lhe o rosto, levemente, como se beija...um pai! Esta, sim, lhe era, seguramente, a mais perversa e assídua humilhação de sua vida.
Há 20 anos, o casal perfeito. Ele, um professor quarentão, muito reconhecido e mesmo invejado pelos seus pares; ela, aos 20, uma aluna, ansiosa em iniciar a carreira na esteira daquele homem a orientá-la com a segurança de um farol. Ambos tão dedicados a mesma coisa que nem precisariam de filhos ou de ninguém. Se bastavam em tudo: conversas de entrar noite e dia, dia e noite, com intervalos generosos para o amor, por vezes selvagem, beirando o obsceno, como num romance, na ânsia de um destino ditoso, improvável e feliz.
Mas o tempo foi se chegando e, nas ancoretas, ao invés de vinho, vinagre. O professor, aposentado, pôs-se a envelhecer numa melancolia de dar dó, agarrando-se a sua solidão, a quem sinalizava a "única companheira fiel", enquanto a esposa, ao contrário, progredia a olhos vistos, viajando costumeiramente, convidada para as mais diversas atividades, cumprindo o plano que traçara junto daquele a quem um dia rogou juras de um amor irresponsavelmente eterno.
Difícil confessar, mas para ele, vê-la ali, todos os dias, ouvi-la em seus sucessos, tornou-se um castigo. Ela era o verdadeiro retrato de sua decadência. Com os anos, era inegável, estava mais segura, mais radiante, e muito, mas muito mais bonita. O tempo, pensava, rasgava-lhe com os dentes, enquanto com ela, apenas lambia.
Para o professor, incomodava as poucas vezes em que ia à faculdade, em homenagens chorosas e sem sentido, de culto ao passado, a só lhe enaltecer o obsoletismo. Como lhe doíam as lembranças daquilo que fora e tivera, mas que nunca mais. Irritava-se também com os modos cavalheirescos dos professores a rodear-lhe a esposa sempre sorridente e solícita, como se a qualquer momento fosse dançar num salão. Poderia ser feia, ignorante, fria como a miséria, mas não, muito pelo contrário, era tudo aquilo que sempre pedira a Deus, mas a um Deus analfabeto, que escreve por linhas tortas. Daí no que deu.
Marcílio, um jovem colega do departamento, se mostrava um dos tais que não largava das saias da mulher. Sempre inventando projetos novos, ligando altas horas da noite, convocando para reuniões a qualquer momento. Sabia o professor, no entanto, que abusava do ofício para ganhar alunas, tendo sido até flagrado certa feita, no que resultou um inquérito frustro. Por isso, mais difícil ainda compreender a amizade dela com a figura. Ruim de engolir, mas cria: ela  já havia caído nos braços daquele insistente cafajeste.
A esposa, na verdade, numa ingenuidade distraída de mulher honesta, encontrara em Marcílio um bom ouvido. Contara da indiferença do marido em casa, da sua pouca paciência com assuntos de rotina, de sua recusa em passeios antes comuns, da estranheza e diferenças entre os dois. Queria colo e o encontrava na dissimulação de desinteressado amigo, que a abraçava e dizia poder contar com ele para qualquer coisa, "Qualquer!", insistia. Sim, a desejava, mas não se preocupasse: respeitaria a sua condição fiel. Nisso, na determinação do seu fingimento e com a trama da intimidade, a mulher num feio dia lhe segredara: temia pelo marido. Parecia sempre tão deprimido e trazia, na cabeceira da cama, um revólver. Não gostava nem de ver. Pensaria em se matar? Será? Pensaria?
Tarde de uma noite, como tantas, ela não havia chegado. O marido, mergulhava em seu mundo de escritos, sentado à sombra da possibilidade da traição daquela mulher que um dia se disse sua, "Só sua!". Foi quando Marcílio soleirou à porta da casa. O professor desconfiou, gritou com ele, perguntou pela esposa. "Cadê ela?" Marcílio sorriu sem cerimônia:
– Ela é boa demais para você, velho. Não aguenta mais. Por que não morre logo, diabo?
Foi a gota d'água. Indignado, ele correu para o quarto, seguido pelo suposto amante, e pegou o revólver na cabeceira, apontando para o rival. Mas que erro! Marcílio era forte. Tornou com facilidade a arma em direção ao professor e, usando de sua própria mão, apontou-lhe à boca, forçando o gatilho. E foi lá mesmo, no nó de engasgos em sua garganta, onde se enlojou a bala, a mesma que, desde muitas noites silenciosas e de espera, ele desejava, mas não ousara plantar.
Por ironia, ou não, pela manhã, a própria mulher esclareceria para a polícia:
– Eu devia saber que não podia deixá-lo sozinho. Faz tempo, desconfiava que isso poderia acontecer. Ele estava tão estranho... tão... – e chorava lágrimas sem fim.

No velório, não se afastou do caixão, numa vigília doce e prolongada. Marcílio chegou, de roupa nova e cheiro de colônia, pegou em seu ombro e com todo o calor de seu corpo a consolou num abraço. E, oferecendo-lhe amizade incondicional, deixou cair a mão com leveza, roçando a bunda provocante da jovem viúva que, naquele instante, sentira num arrepio do corpo o alívio de um remorso.

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