terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"O POVO: 85 anos presente no Ceará III", crônica de Raymundo Netto para O POVO (20.2)


Clique na imagem para ampliar
Em pé, da esquerda para direita: Filgueiras Lima,  Mário de Andrade  (do Norte), 
não-identificado e Martins D'Alvarez;
Sentados, da esquerda para direita: Paulo Sarasate, Suzana de Alencar Guimarães, 
Raul Bopp (autor de Cobra Norato, em visita a Fortaleza no final da década de 1920), 
Demócrito Rocha e  Silveira Filho. (Foto: Arquivo Nirez)

O Modernismo em Demócrito Rocha

“Saudade que ainda espera,/ É lembrança./
Saudade só é saudade,/Quando não resta esperança.” (Demócrito Rocha)

Já vimos que o jovem Demócrito Rocha saíra de seu berço natal, a pequena aldeia de Caravelas da Bahia, e dirigiu-se a Aracaju, em 1907, onde, por meio da tia, ingressaria em melhores escolas, dentre elas, o Ateneu Sergipano, onde lecionava o latinista Brício Cardoso. Por intermédio de Jackson de Figueiredo, um admirador do cearense Farias Brito, foi apresentado à Filosofia e a Literatura.[1] Também foi em Aracaju que conheceu o Esperanto, paixão a carregar pela vida inteira — integrou o Esperanto Klubo-Cearense, primeiro clube esperantista do Ceará, escrevia para o jornal Nova Mondo (1923) e, na fase final de sua vida, lia a Bíblia no idioma artificial de Zamenhof[2]. A partir dos benefícios proporcionados pela fluência da “língua universal”, tomou gosto pela Filatelia — no futuro, introduziria uma coluna sobre selos em O POVO —, e comunicava-se com diversos países, atualizando-se dos fatos antes de muitos de seu tempo.

Já casado, suas filhas estudavam no Colégio da Imaculada Conceição, onde, por um período, foram alunas de Rachel de Queiroz, paciente do dr. Demócrito, o dentista, além de amiga e companheira de movimento literário e futura — eterna — colaboradora do seu jornal. Aconselhado por Lourenço Filho, na época redimensionando o ensino público estadual, colocou-as na Escola Normal, a contragosto da esposa, Creusa.

Em casa, gostava de ouvir música brasileira e clássica, por meio de seu gramofone, lia de tudo, não descuidando de tomar as tarefas das filhas Albanisa e Lúcia. Ao contrário do jornalista rigoroso e combativo, em casa e com os amigos, Demócrito era brincalhão, alegre e irreverente[3]. Num baile de carnaval do Clube Diários, por exemplo, não tendo uma fantasia, enrolou-se numa bandeira nacional e foi à folia. Em sua casa, nunca almoçava sozinho. Ao chegar mais tarde, convidava até os vizinhos para o acompanharem. Da mesma forma, era frequente proseador nos quiosques, restaurantes, bancos de praça e cafés da cidade (dentre eles o Java, onde se conjeturou a criação da Padaria Espiritual, e os do Passeio Público).

Em 1924, na sua revista Ceará Ilustrado, criou o concurso de eleição do “Príncipe dos Poetas Cearenses”, cujo eleito foi o Padre Antônio Tomás. Em 1963, 22 anos após a morte do padre, e 20 da de Demócrito, nova eleição realizada, a vitória foi de Cruz Filho. Em 1974, Jáder de Carvalho, e, com o falecimento deste, em 1985, foi eleito o atual príncipe, o pacatubano Artur Eduardo Benevides.

Em 1928, Demócrito lançou O POVO! Afirmou Rachel de Queiroz, mais tarde: “Acho que nunca, em Fortaleza, um jornal novo tivera êxito assim fulminante. E O POVO era Demócrito, Demócrito que o fazia todo, com a ajuda entusiástica e solitária de Paulo Sarasate.[4]”. De fato, O POVO, ao contrário dos dias atuais, surgia em meio a diversos jornais concorrentes, mas rapidamente firmou-se, sendo hoje, dentre eles, o único existente. A sua sede situava-se num sobradinho na praça dos Leões, o de número 158. A tiragem, a 200 réis o exemplar, rapidamente se esgotava. O motivo, todos sabiam, a coluna de Demócrito, “Nota”, continuação do sucesso de sua também “Nota do Dia”, que escrevia anteriormente em O Ceará, jornal de Ibiapina. Mais tarde, assinando como “Barão de Almofala”, pseudônimo usado na época de O Ceará, abriu a coluna de Grafologia de O POVO, que fez grande sucesso entre leitores.

E mais: Demócrito, conhecedor de todos os escritores cearenses da época, tentou uni-los como pôde, democraticamente, tanto os “modernistas e passadistas”, mesmo os que residiam fora do estado, como Edigar de Alencar, fazendo de sua folha não apenas o espaço da notícia, da denúncia, mas da beleza, da vida e arte. Ele, inclusive, poeta e admirado por tantos, escrevia, mas sob o pseudônimo de “Antônio Garrido”. E esse Demócrito criava enquetes com entrevistas de escritores, abria colunas literárias, relacionava-se com o modernismo de São Paulo e Rio de Janeiro — “para nós, então, as duas metades inacessíveis do Paraíso”, conforme Rachel de Queiroz — e promovia a literatura do Ceará. Manifestava: “O modernismo que eu entendo é esse que nós fazemos: modernismo nacional, saturado de tudo quanto é nosso, original, sugestivo, impressionante... Querem saber? Se eu continuasse a dizer o que penso do modernismo não acabaria mais”. Tudo isso fez com que Filgueiras Lima decretasse: “Demócrito tornou-se, em pouco, a coluna mestra do modernismo no Ceará”. E é verdade.

Não bastasse a inquietação que trazia em seu jornal, Demócrito criou o Maracajá, “suplemento literário de O POVO” que, embora tenha saído apenas em dois números, teve “[...] atuação decisiva e, porventura, espetaculosa, sensacional...”, como lembra Filgueiras. Tão atuante era a presença cearense nos primeiros anos do modernismo, que alguns dos textos publicados em Maracajá foram reproduzidos na famosa Revista de Antropofagia, dentre os quais “A Matança dos Inocentes”, de Demócrito Rocha. Importante destacar que os editores paulistas suprimiram o final de seu texto em que criticava o modernismo de “lá”: “Eles metem excessiva erudição no que fazem. E bancam sisudez. Nós [escritores de ‘cá’] somos alegres por índole. Em São Paulo, os rapazes para fazer a sua antropofagia precisam dar o laço à gravata.” Assim, além de outros, o Diário da Tarde, de Curitiba, em 2 de julho de 1929, dizia que Antônio Garrido [Demócrito], Paulo Sarasate e Mário de Andrade [do Norte] “são os construtores libérrimos do Ceará intelectual de hoje”.

O reconhecimento ao jornalista e poeta Demócrito Rocha, além de ao seu jornal, vinha de todos os lados. Henriqueta Galeno, filha do poeta Juvenal, a primeira e maior feminista cearense [uma das primeiras defensoras do divórcio no Brasil], criadora da Casa de Juvenal Galeno — durante décadas a Casa foi o maior e mais legítimo centro cultural cearense, hoje ainda resistindo em beleza e em ideal, mas desconhecida e/ou negligenciada por parte da ignorância cultural dos filhos da terra ou pela soberba da erudição palaciana —, em sua viagem ao Rio de Janeiro, em 1931, apresentava, em diversas conferências, O POVO, “um dos mais valiosos jornais da minha terra” [que contribuía para o ideal feminista já naqueles tempos[5]], e, dentre outros intelectuais, “Demócrito Rocha, legítima e brilhante expressão jornalística, orador vibrante e fecundo”.

E foi ali, na Casa de Juvenal Galeno, em 5 de setembro de 1930, que Demócrito deixou no álbum de visitas de Henriqueta manuscrito inédito do poema “Rio Mar”, assinando, como de costume, “Antônio Garrido”:

Veio das catadupas* do dilúvio universal
Veio dos planetas que se fundiram
ao calor das forjas de todos os Sóis...
Veio do orvalho caído de todas as folhas
nas grandiosas matas sul-americanas...

Foi a cordilheira dos Andes que se desmanchou
em água e entrou desvairada pelo Oceano...

Rio! — umbigo do mar que nasce
do ventre fecundo da Terra Brasileira,
bebendo-lhe o sangue virgem
na formidável placenta da Amazônia...**

(*) imensas quedas dágua
(**) Atualizamos a ortografia.

Em 7 de janeiro de 1929, escreve Demócrito: “Apareceu por aqui [na redação de O POVO], com vontade de ajudar-me, um estudante de Direito, de pouco mais de 20 anos de idade. Paulo Sarasate é o seu nome[6]. O jovem já tem experiência em revista, já andou preso, com Perboyre e Silva e Plácido Castelo. Vou dar-lhe o cargo de redator-secretário.”[7]

O POVO se fortalece. Quer saber como? Daqui a 15 dias tem mais.



[1] Jackson de Figueiredo saiu de Aracaju para estudar Direito na Bahia. Anos mais tarde, num acidente, morreria afogado.
[2] Em 11 de dezembro de 1955 foi fundado o Esperanto Klubo Demócrito Rocha, em sua homenagem.
[3] Traços de União, da (sempre) jovem Adísia Sá, explora o lado familiar de Demócrito Rocha.
[4] Muitas das informações sobre o modernismo no Ceará e a ação de Demócrito Rocha, aqui indicadas, podem ser encontradas em O Modernismo na Poesia Cearense: primeiros tempos, de Sânzio de Azevedo, pelas Edições Demócrito Rocha, 2012, que traz, anexas, as duas edições fac-similares de Maracajá.
[5] Creusa do Carmo Rocha, esposa de Demócrito, foi a primeira mulher a votar no Ceará.
[6] Paulo era filho do maestro Henrique Jorge, músico, um dos membros da Padaria Espiritual.
[7] Memória de um Jornal, de José Raymundo Costa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário