terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"O Braga era Assim...", crônica de Vera Lúcia Albuquerque de Moraes (19.02)



"Rubem Braga", por J. Bosco
Na crônica Lucíola era assim, sentimos quão importante é a leitura do texto por prazer - esse sorriso que transborda para o interior e preenche todos os poros e recantos mais íntimos de nosso corpo e, surpresos, deparamo-nos com algo que, inconsciente e insistentemente, procurávamos como necessidade vital!
       O Rubem Braga não deixa por menos, ao iniciar sua crônica com esse irônico e delicioso parágrafo: “E de repente nos lembramos das damas antigas dos velhos romances: como guardavam coisas nos seios! Dali tiravam o punhal, a flor, o veneno, maços de cartas fatais, lenços... Ah, é talvez por isto que as mulheres de hoje perderam tanto de seu mistério! Levam apenas o revólver na bolsa, e nada mais”. E mais adiante: “E nem ao menos desmaiam mais, essas senhoras de hoje. Quando o fazem é apenas por mau estado de saúde. Antigamente, o desmaio era um gesto, uma atitude, um recurso normal de mímica; quase fazia parte da conversação. Não que fossem falsos desmaios. Não; eram sinceros e naturais. As moças aprendiam a desmaiar como a tocar piano, a bordar, a falar francês. Era uma prenda doméstica”.
       O cronista formula, com maestria, um resumo perspicaz de gestos e atitudes que caracterizavam aquela sociedade feminina do século XIX em confronto com as pálidas “senhoras de hoje”. Volta a uma época em que o discurso sofria uma série de interdições morais, éticas e religiosas e o mundo da mulher era apreendido mais nas entrelinhas: olhares sinuosos, palavras sussurradas, recados e bilhetes escondidos, enfim, uma série de estratégias desenvolvidas para que a mocinha, tão vigiada, tivesse a chance de enviar algum sinal ao seu amado. Por causa dessas vias indiretas, aconteciam os mal-entendidos e impedimentos que culminavam em constantes brigas dos casais: nesses casos, os lencinhos molhados de lágrimas constituíam recursos infalíveis para a reconciliação.
       Mas Lucíola não era uma pobre mulher frágil; ao contrário, era a mais poderosa cortesã do Império, “a sultana de ouro”, como dizia Alencar, e acrescenta Rubem Braga: “Se quiserem o nome todo direi que não sei; apenas posso informar que ela não tem telefone. Seu último endereço era em Santa Teresa. Notícias suas os interessados podem obter lendo o romance de José de Alencar”.
       Deparamo-nos com uma mulher-mito de sensualidade e de luxúria, na Corte fluminense: “...havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes das narinas que tremiam...”, “...arqueava, enfunando a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso...”, “...as tranças luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros...”, “...uma nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés...”
       Mas na concepção moral do romancista Alencar, essa condição atual de cortesã era terrível consequência de uma situação infeliz na infância da protagonista: a mulher, vítimizada pelo destino, traz ainda, em sua alma, “uma dignidade meiga e nobre” – presságio de que recobrará, no final do romance, a pureza de alma, apenas velada pelas circunstâncias existenciais.
       Nada se compara à sedução dessa personagem – eco de outras famosas personagens da literatura francesa  no imaginário masculino traduzido por Rubem Braga. Mas o que impressiona verdadeiramente o cronista é a personalidade camaleônica de Lucíola, uma vez que se metamorfoseia, sem cessar, segundo humores e ocasiões, demonstrando inesgotável versatilidade: “o leitor também a verá lívida, ou a gargalhar, ou caída em profunda distração, ou titilante de heroína e sarcasmo, ou ébria de champanha e coroada de verbenas...”
       Captar a beleza desse romântico livro com tamanha percepção estética, permeada de boa dose de leveza e bom-humor, nos deixa com saudade de uma época não vivida, plena de possibilidades, encantamentos, mistérios e seduções.
       Não, não se fazem mais cronistas como antigamente...

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