Pintura a óleo sobre madeira, por Otacílio
de Azevedo
Em 15
de abril de 2012, completa-se 100 anos do naufrágio do “Titanic”, o famoso
navio que diziam, na época, “nem Deus conseguiria afundar”.
Fato:
Deus deve ter coisa mais importante a fazer do que assistir a passeio de barquinhos
nessa coxia (leia-se “oceano”) de subdesenvolvido planetóide. Nem não precisaria
conferir qualquer esforço para de rápido pôr ao fundo o chaminenoso grandalhão,
cemitério d’água de quase 2.000 pessoas, a maioria da terceira classe, claro,
assim como o é a do terceiro mundo. Entretanto, não há tamanho para a queda, e esta,
mesmo um dia, é certa para todos!
Barcos
vêm e se vão numa vaga rosa ou escaudalosa rota, muito própria — e única — de
cada. À semelhança de nossas vidas, nascem, navegam, se encontram, aportam, se
perdem, soçobram, afundam e apodrecem.
Imagino-os
com bandeirinhas festivas e, em seu interior, dezenas e ou centenas de pessoas
acenando: “Não se esqueça de mim, também fiz parte de sua vida.” Às vezes,
dentre tantos e inúmeros rostos de se acharem importantes, um ou dois, apenas,
valem a cor de uma sua lembrança. Como barcos, carregamos coisas demais, a
ponto de imaginarmos como ainda ser possível continuar a navegar. Mas, como
dizia o infante português D. Henrique, criador da primeira escola virtual — a
de Sagres — e visionário incentivador do internAutismo:
“Navegar é preciso; viver não é preciso!”
Navegamos,
porém, buscando lastros a nos sustentar ante o marzão de loucura, de violência,
de consumo, de desperdício, de maldade, de incompreensíveis discursos e regras vazios,
de burríssimos Homo lattes pontuados
na forja da pressa de se arvorar e não de contribuir, inventar,
originalizar-se.
Passo
o olhar na “Crônica...” do “Gabo”: “Escreveu-lhe então uma carta febril de
vinte folhas, na qual soltou sem pudor as verdades amargas que trazia
apodrecidas no coração desde a noite funesta. Falou-lhe das cicatrizes eternas
que ele deixara no seu corpo, do sal da sua língua, do rastilho de fogo da sua
verga africana. Entregou-a à funcionária dos correios, que ia à sexta-feira à
tarde bordar com ela para levar-lhe as cartas, e convenceu-se de que aquele
desabafo final seria o derradeiro da sua agonia. A partir de então já não tinha
consciência do que escrevia, nem sabia de ciência certa quem escrevia, mas
continuou a escrever sem tréguas durante dezessete anos.”
O
cantar dos galos, disso tinha “ciência certa”, calam os apitos do barco, e
calam profundamente, mas não podem com os marulhos dos ventos soprantes. Não
apenas com os ruídos, mas com a força que carrega as coisas para o mais
distante dos ermos e dos remos.
Os barcos
quando nascem de “quilha torta” compreendem bem de a extensão do caminho, mas
não se iludem com trajetórias pré-traçadas, nem crêem tanto na força de seu timão.
Preferem as velas ao motor e as estrelas são seu único guia — enxergam mais à
noite de astros. O risco de ir à pique é sempre iminente e, por vezes, desejado,
senão seguro. Para eles, as noites são sempre frias e apenas o luar aquece os seus
corações. Contemplam as madeixas verdes das águas, ouvem os sons de seus duelos,
apreciam o encontro breve — a certeza do seguinte adeus — de outros barcos a
navegar nas espáduas daquilo que ignoram. Tristes, singram solitários em cursos
inexplorados, por entre dragões e sereias, a pôr demãos de futuro esquecimento,
sem acenos de saudade, mas com olhares de arrebóis lacrimosos de nunca se esquecer.
Raymundo Netto. Contato:
raymundo.netto@uol.com.br
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