quarta-feira, 4 de abril de 2012

"Da Memória dos Relógios", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO (3.4)



aos bairros José Bonifácio e Parque Araxá, hoje quase esquecidos


Se despertássemos um dia ouvindo os ruídos da manhã de tempos atrás, certamente tomaríamos um susto. O ruge-ruge do mundo, os barulhos cotidianos vão mudando com o passar dos anos. Os roncos de motores dos automóveis, os diálogos televisivos na casa vizinha, dariam lugar aos pregões de rua, às valsinhas chiadas num rádio e às conversas de senhoras lavando roupas.
Mas nem tudo acompanha a marcha inexorável do tempo: aqui e ali encontramos um recanto perdido em algum quintal de subúrbio, um corredor sombrio em certo casarão ainda não demolido pela especulação imobiliária, uma árvore riscada por cupins e povoada de pássaros invisíveis esquecida em pleno centro da cidade; vezes mesmo há bairros inteiros, margeando outros mais movimentados, que parecem ter sido poupados pelas pesadas correntes dos relógios.
Se neles penetrássemos com bastante cuidado, numa delicadeza tal que não toque nos míseros fiapos das teias de aranhas que formam as sensíveis roldanas que movimentam estes e outros mundos esquecidos pelos deuses do progresso, com certeza ganharíamos o paraíso.
Mas há que se andar com mocassins de pelica, a respiração lenta e pausada, para que as suas finas membranas não sejam rompidas. E é certo que estes mundos quase invisíveis, estas esquinas impossíveis do tempo, precisarão sempre de um ouvido atento, de dois olhos bastante distraídos, para não desaparecerem entre as infinitas peças que movimentam a engrenagem desse gigantesco mecanismo do mundo.

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