ARS
Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não.
Ou não, porque nem sempre deciframos os sinais à nossa frente. Ainda agora os jornais estão repetindo, a propósito das recentes eleições, “que é preciso entender o recado das urnas”. Ou seja: as urnas falam, emitem mensagens. Cartola - o sambista- dizia “as rosas não falam, as rosas apenas exalam o perfume que roubam de ti”. Perfumes falam. E as urnas exalaram um cheiro estranho. O presidente diz que seu partido precisa tomar banho de “cheiro de povo”. E enquanto repousava nesses feriados e tomava banho em nossas águas, ele tirou várias fotos com cheiro de povo.
Paixão de ler. Ler a paixão.
Como ler a paixão se a paixão é quem nos lê? Sim, a paixão é quando nossos inconscientes pergaminhos sofrem um desletrado terremoto. Na paixão somos lidos à nossa revelia .
O corpo é um texto. Há que saber interpretá-lo. Alguns corpos, no entanto, vêm em forma de hieroglifo, dificílimos. Ou, a incompetência é nossa, iletrados diante deles?
Quantas são as letras do alfabeto do corpo amado? Como soletrá-lo? Como sabê-lo na ponta da língua? Tem 24 letras? Quantas letras estranhas, estrangeiras nesse corpo? Como achar o ponto G na cartilha de um corpo? Quantas novas letras podem ser incorporadas nesta interminável e amorosa alfabetização? Movido pelo amor, pela paixão pode o corpo falar idiomas que antes desconhecia.
O médico até que se parece com o amante. Ele também lê o corpo. Vem daí a semiologia. Ciência da leitura dos sinais. Dos sintomas. Daí partiu Freud, para ler o interior, o invisível texto estampado no inconsciente. Então, os lacanianos todos se deliciaram jogando com as letras - a letra do corpo, o corpo da letra.
Diz-se que Marx pretendeu ler o inconsciente da história e descobrir os mecanismos que nela estavam escritos/inscritos. Portanto, um economista também lê a sociedade. Os empresários e executivos, por sua vez, se acostumaram a falar de "qualidade total". Mas seria mais apropriado falar de "leitura total". Só uma leitura não parcial, não esquizofrênica do real pode nos ajudar na produtividade dos significados. Por isto, é legítimo e instigante falar não apenas de uma "leitura da economia", mas de algo novo e provocador: a "economia da leitura".
Não é só quem lê um livro, que lê.
Um paisagista lê a vida de maneira florida e sombreada. Fazer um jardim é reler o mundo, reordenar o texto natural. A paisagem, digamos, pode ter "sotaque", assim como tem sabor e cheiro. Por isto se fala de um jardim italiano, de um jardim francês, de um jardim inglês. E quando os jardineiros barrocos instalavam assombrosas grutas e jorros d’água entre seus canteiros estavam saudando as elipses do mistério nos extremos que são a pedra e a água, o movimento e a eternidade.
O urbanista e o arquiteto igualmente escrevem, melhor dito, inscrevem, um texto na prancheta da realidade. Traçados de avenidas podem ser absolutistas, militaristas, e o risco das ruas pode ser democrático dando expressividade às comunidades.
Tudo é texto. Tudo é narração.
O astrônomo lê o céu, lê a epopeia das estrelas. Ora, direis, ouvir & ler estrelas. Que estórias sublimes, suculentas, na Via Láctea. O físico lê o caos. Que epopéias o geógrafo lê nas camadas acumuladas num simples terreno. Um desfile de carnaval, por exemplo, é um texto. Por isto se fala de “samba enredo”. Enredo além da história pátria referida. A disposição das alas, as fantasias, a bateria, a comissão de frente são formas narrativas.
Uma partida de futebol é uma forma narrativa. Saber ler uma partida - este o mérito do locutor esportivo, na verdade, um leitor esportivo. Ele, como o técnico, vê coisas no texto em jogo, que só depois de lidas por ele, por nós são percebidas. Ler, então, é um jogo. Uma disputa, uma conquista de significados entre o texto e o leitor.
Paulinho da Viola dizia: "As coisas estão no mundo eu é que preciso aprender”. Um arqueólogo lê nas ruínas a história antiga.
Não é só Scheherazade que conta estórias. Um espetáculo de dança é narração. Uma exposição de artes plásticas é narração. Tudo é narração. Até o quadro “Branco sobre o branco” de Malevich conta uma estória.
Aparentemente ler jornal é coisa simples. Não é. A forma como o jornal é feita, a diagramação, a escolha dos títulos, das fotos e ilustrações são já um discurso. E sobre isto se poderia aplicar o que Umberto Eco disse sobre o “Finnegans Wake” de James Joyce: “o primeiro discurso que uma obra faz o faz através da forma como é feita”.
Estamos com vários problemas de leitura hoje. Construimos sofisticadíssimos aparelhos que sabem ler. Eles nos lêem. Nos lêem, às vezes, melhor que nós mesmos. E mais: nós é que não os sabemos ler. Isto se dá não apenas com os objetos eletrônicos em casa ou com os aparelhos capazes de dizer há quantos milhões de anos viveu certa bactéria. Situação paradoxal: não sabemos ler os aparelhos que nos lêem. Analfabetismo tecnológico.
A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto também lê o mundo. Às vezes, sabiamente. Em nossa arrogância o desclassificamos . Mas Levi-Strauss ousou dizer que algumas sociedades iletradas eram ética e esteticamente muito sofisticadas. E penso que analfabeto é também aquele que a sociedade letrada refugou. De resto, hoje na sociedade eletrônica, quem não é de algum modo analfabeto?
Vi na fazenda de um amigo aparelhos eletrônicos, que ao tirarem leite da vaca, são capazes de ler tudo sobre a qualidade do leite, da vaca , e até (imagino) lerem o pensamento de quem está assistindo à cena. Aparelhos sofisticadíssimos lêem o mundo e nos dão recados. A camada de ozônio está berrando um S.O.S., mas os chefes de governo, acovardados, tapam (economicamente) o ouvido. A natureza está dizendo que a água, além de infecta, está acabando. Lemos a notícia e postergamos a tragédia para nossos netos.
É preciso ler, interpretar e fazer alguma coisa com a interpretação. Feiticeiros e profetas liam mensagens nas vísceras dos animais sacrificados e paredes dos palácios. Cartomantes lêem no baralho, copo d’água, búzios.Tudo é leitura. Tudo é decifração.
Ler é uma forma de escrever com mão alheia.
Minha vida daria um romance? Daria, se bem contado. Bem escrevê-lo são artes da narração. Mas só escreve bem, quem ao escrever sobre si mesmo, lê o mundo também.
A Crônica "Ler o Mundo" de Afonso Romano de Sant'Anna (em 2010, completa-se 30 anos da publicação do poema "Que País é Este?") é a introdução do livro "Ler o Mundo" que, em breve, será lançado pela editora Global.
Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não.
Ou não, porque nem sempre deciframos os sinais à nossa frente. Ainda agora os jornais estão repetindo, a propósito das recentes eleições, “que é preciso entender o recado das urnas”. Ou seja: as urnas falam, emitem mensagens. Cartola - o sambista- dizia “as rosas não falam, as rosas apenas exalam o perfume que roubam de ti”. Perfumes falam. E as urnas exalaram um cheiro estranho. O presidente diz que seu partido precisa tomar banho de “cheiro de povo”. E enquanto repousava nesses feriados e tomava banho em nossas águas, ele tirou várias fotos com cheiro de povo.
Paixão de ler. Ler a paixão.
Como ler a paixão se a paixão é quem nos lê? Sim, a paixão é quando nossos inconscientes pergaminhos sofrem um desletrado terremoto. Na paixão somos lidos à nossa revelia .
O corpo é um texto. Há que saber interpretá-lo. Alguns corpos, no entanto, vêm em forma de hieroglifo, dificílimos. Ou, a incompetência é nossa, iletrados diante deles?
Quantas são as letras do alfabeto do corpo amado? Como soletrá-lo? Como sabê-lo na ponta da língua? Tem 24 letras? Quantas letras estranhas, estrangeiras nesse corpo? Como achar o ponto G na cartilha de um corpo? Quantas novas letras podem ser incorporadas nesta interminável e amorosa alfabetização? Movido pelo amor, pela paixão pode o corpo falar idiomas que antes desconhecia.
O médico até que se parece com o amante. Ele também lê o corpo. Vem daí a semiologia. Ciência da leitura dos sinais. Dos sintomas. Daí partiu Freud, para ler o interior, o invisível texto estampado no inconsciente. Então, os lacanianos todos se deliciaram jogando com as letras - a letra do corpo, o corpo da letra.
Diz-se que Marx pretendeu ler o inconsciente da história e descobrir os mecanismos que nela estavam escritos/inscritos. Portanto, um economista também lê a sociedade. Os empresários e executivos, por sua vez, se acostumaram a falar de "qualidade total". Mas seria mais apropriado falar de "leitura total". Só uma leitura não parcial, não esquizofrênica do real pode nos ajudar na produtividade dos significados. Por isto, é legítimo e instigante falar não apenas de uma "leitura da economia", mas de algo novo e provocador: a "economia da leitura".
Não é só quem lê um livro, que lê.
Um paisagista lê a vida de maneira florida e sombreada. Fazer um jardim é reler o mundo, reordenar o texto natural. A paisagem, digamos, pode ter "sotaque", assim como tem sabor e cheiro. Por isto se fala de um jardim italiano, de um jardim francês, de um jardim inglês. E quando os jardineiros barrocos instalavam assombrosas grutas e jorros d’água entre seus canteiros estavam saudando as elipses do mistério nos extremos que são a pedra e a água, o movimento e a eternidade.
O urbanista e o arquiteto igualmente escrevem, melhor dito, inscrevem, um texto na prancheta da realidade. Traçados de avenidas podem ser absolutistas, militaristas, e o risco das ruas pode ser democrático dando expressividade às comunidades.
Tudo é texto. Tudo é narração.
O astrônomo lê o céu, lê a epopeia das estrelas. Ora, direis, ouvir & ler estrelas. Que estórias sublimes, suculentas, na Via Láctea. O físico lê o caos. Que epopéias o geógrafo lê nas camadas acumuladas num simples terreno. Um desfile de carnaval, por exemplo, é um texto. Por isto se fala de “samba enredo”. Enredo além da história pátria referida. A disposição das alas, as fantasias, a bateria, a comissão de frente são formas narrativas.
Uma partida de futebol é uma forma narrativa. Saber ler uma partida - este o mérito do locutor esportivo, na verdade, um leitor esportivo. Ele, como o técnico, vê coisas no texto em jogo, que só depois de lidas por ele, por nós são percebidas. Ler, então, é um jogo. Uma disputa, uma conquista de significados entre o texto e o leitor.
Paulinho da Viola dizia: "As coisas estão no mundo eu é que preciso aprender”. Um arqueólogo lê nas ruínas a história antiga.
Não é só Scheherazade que conta estórias. Um espetáculo de dança é narração. Uma exposição de artes plásticas é narração. Tudo é narração. Até o quadro “Branco sobre o branco” de Malevich conta uma estória.
Aparentemente ler jornal é coisa simples. Não é. A forma como o jornal é feita, a diagramação, a escolha dos títulos, das fotos e ilustrações são já um discurso. E sobre isto se poderia aplicar o que Umberto Eco disse sobre o “Finnegans Wake” de James Joyce: “o primeiro discurso que uma obra faz o faz através da forma como é feita”.
Estamos com vários problemas de leitura hoje. Construimos sofisticadíssimos aparelhos que sabem ler. Eles nos lêem. Nos lêem, às vezes, melhor que nós mesmos. E mais: nós é que não os sabemos ler. Isto se dá não apenas com os objetos eletrônicos em casa ou com os aparelhos capazes de dizer há quantos milhões de anos viveu certa bactéria. Situação paradoxal: não sabemos ler os aparelhos que nos lêem. Analfabetismo tecnológico.
A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto também lê o mundo. Às vezes, sabiamente. Em nossa arrogância o desclassificamos . Mas Levi-Strauss ousou dizer que algumas sociedades iletradas eram ética e esteticamente muito sofisticadas. E penso que analfabeto é também aquele que a sociedade letrada refugou. De resto, hoje na sociedade eletrônica, quem não é de algum modo analfabeto?
Vi na fazenda de um amigo aparelhos eletrônicos, que ao tirarem leite da vaca, são capazes de ler tudo sobre a qualidade do leite, da vaca , e até (imagino) lerem o pensamento de quem está assistindo à cena. Aparelhos sofisticadíssimos lêem o mundo e nos dão recados. A camada de ozônio está berrando um S.O.S., mas os chefes de governo, acovardados, tapam (economicamente) o ouvido. A natureza está dizendo que a água, além de infecta, está acabando. Lemos a notícia e postergamos a tragédia para nossos netos.
É preciso ler, interpretar e fazer alguma coisa com a interpretação. Feiticeiros e profetas liam mensagens nas vísceras dos animais sacrificados e paredes dos palácios. Cartomantes lêem no baralho, copo d’água, búzios.Tudo é leitura. Tudo é decifração.
Ler é uma forma de escrever com mão alheia.
Minha vida daria um romance? Daria, se bem contado. Bem escrevê-lo são artes da narração. Mas só escreve bem, quem ao escrever sobre si mesmo, lê o mundo também.
A Crônica "Ler o Mundo" de Afonso Romano de Sant'Anna (em 2010, completa-se 30 anos da publicação do poema "Que País é Este?") é a introdução do livro "Ler o Mundo" que, em breve, será lançado pela editora Global.
E se quiser saber mais ou conhecer o autor, não perca
IX Bienal Internacional do Livro do Ceará
"Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ler é uma forma de escrever com mão alheia. Minha vida daria um romance? Daria, se bem contado. Bem escrevê-lo são artes da narração. Mas só escreve bem, quem ao escrever sobre si mesmo, lê o mundo também."
ResponderExcluirO Afonso na Bienal? Aaaaaaaaaaahhhhhh!!! Será meu momento tiete, vou levar um tapete vermelho nas costas (risos).
Sou poligâmicamente literária: Marina Colasanti que me perdoe, mas ARS é um dos meus amantes!*-*
ResponderExcluirQue texto magnífico! Um belo e forte elogio à leitura. Obrigada por compartilhar.
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