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O escritor, seja ele quem for, é sempre um triste. Ser triste não é tão ruim se tivermos como premissa que os felizes são aqueles que não escrevem, o que deveria deixá-los tristes, mas nós sabemos que isso não acontece, pois tristes, tristes mesmos, somente nós, os que escrevem, porque a tristeza, assim como a saudade, fazem com que a gente se encontre... enfim!
Estava em meio ao vuco-vuco agitado do aguardado lançamento da 9ª edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará, o terceiro maior evento literário do país, quando, em meio à multidão, uma confusão inesperou-se. Corri.
Estava em meio ao vuco-vuco agitado do aguardado lançamento da 9ª edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará, o terceiro maior evento literário do país, quando, em meio à multidão, uma confusão inesperou-se. Corri.
Os jornalistas e outros curiosos — como eu, admito — estavam entupindo a entrada do teatro Dragão do Mar. Duas figuras estranhas — ou nem tanto — subiam lentamente pela escadaria. À frente, uma muito branca, de pele e de sorriso, sacudia as madeixas negras e batia as mãos em seu vestidinho de passeio branco estampado em flores coloridas que desabrochavam, cercadas por borboletas, no tecido, enquanto, logo atrás, suando pelas bicas, um senhor de cabelos branco-nuvem, encimados por uma cartolinha, e de óculos quadrados escorrendo pelo nariz, arrastava uma canastra vermelha e outra cor de café, ao som da vozinha impaciente:
— Vamos logo, VisconDídimo, deixe de moleza que eu não posso perder o lançamento dessa Bienal! Homessa, homem!
O pobre sabugo ao deitar a bagagem, finalmente, sentou-se esbaforido e pôs-se a contestar, enxugando-se todo com um lenço:
— Mas, EmiliAcioli, eu avisei... que vir assim..., carregando essas canastras nas costas... seria de uma história... cascuda... Ufa!
— E você acha que eu perderia a chance de escrever e divulgar o meu livro de memórias aqui, seu sabugo de uma figa? Aprendi: quando tenho uma intuição para escrever algo que "vem", é porque precisa ser escrito mesmo! Por que, para quem e como? Isso é o que eu nunca fico sabendo... Aliás, como meu "secretário", quem vai escrever mesmo é você, viu? Eu escrevo maaaais é na minha cabeça e você é quem vai botar esses seus dedos pequenos e gordinhos para trabalhar... E para meu livro, veja bem, eu exijo um papel cor de céu com todas as suas estrelinhas... — exultava a boneca a sacudir os braços de macela dramaticamente diante da espontânea plateia.
— E tinta cor do mar com todos os seus peixinhos... — completou, irônico, o pobre VisconDídimo ao prever nova confusão. — Essa não, dona EmiliAcioli, vamos fazer suas memórias de um jeito diferente desta vez, por favor!
— Ah, é para fazer diferente, é? Então, comece: coloque no papel seis pontos de exclamação!
— Mas, mas... o que isso significa?
— Significa que tenho muitas certezas, pelo menos umas seis... Você sabia, por acaso, que a Rachel de Queiroz, a minha Rachelzinha, vai ser a grande homenageada nesta Bienal? Pois eu tenho é a certeza que ela vai estar por lá. Eu lembro quando eu, a Flora e o Raul a encontramos na Casa do Pici, deitadinha de barriga no chão de tijolos, escrevendo seu primeiro livro: “O Doze”. Mas, depois que nós três chegamos virou “O Quinze”. — soltou uma risadinha disfarçada pela mão — E como foi difícil chegar na casa dela, viu? Pegamos um trem, descemos num asilo e andamos, andamos, andamos taaaanto que precisamos pegar o avião do “seu” Odacir para chegar lá. Tivemos até que pousar em cima dos benjamins que guardavam a casa, acredita?
— Difícil acreditar, Marquesa... — confessou o sábio retirando do bolso da sobrecasaca uns anõezinhos verdes. — “As doces meninas de outrora/ amanheceram/ vestiram os vestidos novos/ pintaram as unhas de vermelho/ por um instante resplandeceram/ depois baixaram as cabecinhas louras/ e envelheceram como as flores.”
— Ora, VisconDídimo, e a verdade não é apenas uma mentira bem pregada? Eu morro é de rir quando vejo o povo dizer que acha lindo ser escritor, que é uma vida fácil, que o escritor recebe uma “iluminação”, começa a escrever e termina tudo pronto e limpinho... Que nada! É trabalho, trabalho, trabalho... Vamos, VisconDídimo, anda... ou melhor: escreva!
— “Capítulo I: !!!!!!”, está bom assim, dona escritora? — escreveu, no capricho.
A bonequinha sacou uma lupa enorme — sem lente — do laço de fita na cintura e aproximou-se, posuda, da folha. Conferiu se eram mesmo seis — não poderia ser cinco nem sete — e lembrou: “Se podes olhar, vês!”. Sim, VisconDídimo, é uma começo exclamante!!! Exclamar lembra coisas alegres. Tristezas para o lado de lá...
— “Triste não é saber que não há/nem que não haverá/ triste é saber que nunca houve/ e que agora para todo o nunca/ choraremos.”
— Eita, minha Ângela do Céu, que você hoje está parecendo um passarinho carrancudo... Deixe de moleza e escreva: Espaço “Não me Deixes”...
— “Não me Deixes”? Que nome lindo... Que tipo de espaço é esse, boneca?
— É um local da Bienal feito para acolher os projetos e grupos que mantêm viva vivíssima a literatura, todos os dias, no Ceará. É uma homenagem dos cearenses à Rachel, no cantinho que lhe era o melhor do mundo, e um reconhecimento ao trabalho incansável, e muitas vezes anônimo, de artistas locais, tipo: Literatura de Lua, Templo da Poesia, Poemas Violados, Concerto ÚMnico de Poetas Independentes, Zona Poética Liberada, Grupo Chocalho, Abraço Literário, Bazar das Letras do SESC, projeto “Ouvi Dizer” do Banco do Nordeste, Clube do Bode, Associação Cearense de Escritores, Academias de Letras, Quintais Poéticos, Ideal Clube, Caixeiro Viajante e outros tantos. Vai estar todo um mundo de sentimentos por lá!
VisconDídimo chegou até a achar graça do jeito contente da boneca que rodopiava enquanto tagarelava sem parar:
— Tem também a certeza da comemoração na Bienal, no dia 13 de abril, do aniversário de Fortaleza, lourinha desmiolada de sol, e da presença de seus memorialistas, cronistas, contistas e historiadores revelando seus amores pela cidade.
— O amor é uma palavra que muda de cor... — filosofava o sabugo com todo jeitão sereno de vovô criador de histórias para nove netos.
— Já pensou, VisconDídimo, o meu livro de memórias em meio a todos aqueles livros? Mais de quarenta mil criancinhas, que já estão agendadas na visitação escolar, folheando-o e comprando-o com as Notinhas Legais... Todas vão me ler, já pensou?... E eu nem vou precisar usar o Pirlimpimpim!
— Que memórias? Mas que memórias, EmiliAcioli? Desse jeito não terminaremos esse livro nunca! Ademais, prefiro assistir ao Thiago de Melo, Cony, Nicolas Behr, Ana Miranda, Nelson Motta, Marlui Miranda, Afonso Romano de Sant'Anna, aos cordelistas, ao Fórum, aos lançamentos no Café Literário, ao seminário de Centenário da Rachel e o de Democracia, Cultura e Socialismo na América Latina e Caribe...
— Chega! Chega! — interrompeu, impaciente, a sabedicência do sabuguinho também entusiasmado. — Cada qual com seu cada qual, seu cara de coruja seca! — exclamou, remetendo ao VisconDídimo um palmo de língua de trapo.
O “secretário”, incomodado com a noite que se ia, recompôs-se e arrematou:
— E para terminar, EmiliAcioli, o que faremos?
A boneca, recebendo um saco de pipocas do João, deixou brilhar os botões dos olhos:
— Para terminar, no dia 18, último dia do evento, Dia Nacional do Livro Infantil, e aniversário do tio Juca, toda a Bienal se voltará para as crianças com contação de histórias, presença de autores infantis locais e nacionais, brincadeiras, peças, shows, animações e lançamentos de livrinhos... Vai ser um domingo de festa com direito a Maurício de Souza, Marina Colasanti e Pedro Bandeira! Não é demais?
— O que eu queria saber, sua maluquinha, é o que faremos para terminar as suas memórias? Tenho mais o que fazer, ora, ora, dona Quixotinha!
Desconcertada com o fora, EmiliAcioli, para disfarçar, abriu sua canastra de onde partiram borboletas de fevereiro, peixinhos de pedra, bailarinas fantasmas e pôs-se a pensar que, ao invés do sabuguinho, deveria ter pedido ajuda à Cristina, sua melhor amiga desde os dois anos de idade. Toda melada de apple crumble e chá verde com baunilha, encontrou uma pena de pato com todos os seus patinhos, e com ela deitou um gordo e absoluto ponto final no papel já surrado.
— Ponto e pronto. Satisfeito, sabichão?
— Claro, “daqui a cem anos/ todos os nossos problemas/ nos terão resolvido”.
Assim, os dois deram os braços e desceram a escadaria seguidos pelos flashes das câmaras e pelo Mestre Jabuti que, em entrevista em cadeia nacional, anunciou também a sua presença na Bienal, cujo tema é “O Livro e a Leitura dos Sentimentos do Mundo”.
E para aqueles que não gostaram desta crônica, digo apenas, num lampejo lobatiano: pílulas! Tenho dito: vamos todos à maior festa popular do livro, da leitura e da literatura do Ceará!
Socorro Acioli (1975) é escritora, jornalista e mestre em Literatura Brasileira. Autora de Bia Que Tanto Lia, É Pra Ler ou Pra Comer?, A Casa dos Benjamins, O Peixinho de Pedra, O Anjo do Lago, Tempo de Caju e outros. Algumas falas do texto são transcritas ou adaptadas de entrevistas ou do livro Memórias de Emília, de Monteiro Lobato.
Horácio Dídimo é poeta, ficcionista e ensaísta. Membro da Academia Cearense de Letras é formado em Direito e Letras, mestre em Literatura Brasileira (UFPB) e doutor em Literatura Comparada (UFMG). Autor de Tempo de Chuva, Tijolo de Barro, Passarinho Carrancudo, Historinhas do Mestre Jabuti, Historinhas Cascudas e outros, é um dos mais respeitados e admirados no Ceará. Algumas de suas falas são transcrições de seus versos.
Raymundo Netto autor de alguns livros infantis, nenhum para venda nem demonstração, tipo coisa de sonho, por assim dizer. Contato: raymundo.netto@uol.com.br/ blogue: http://raymundo-netto.blogspot.com (AlmanaCULTURA)
Fiquei emocionada com a homenagem ao profº Horácio Dídimo mas principalmente a Acioli pois a conheço e sei da sua dedicação e esforço pra sempre se aprimorar... sou suspeita quando falo nela, porque tenho um carinho enorme.
ResponderExcluirParabéns Raymundo te admiro muito.
Essa bienal vai ser maravilhosa.
Abçs.
Pois acho que deveria estar mais do que na hora ter livros teus publicados.Sou fã assumida de como escreves e do trabalho que faz no teu blogue.É muito bom ler tudo o que divulgas aqui.Abraço:)
ResponderExcluir"O escritor, seja ele quem for, é sempre um triste. Ser triste não é tão ruim se tivermos como premissa que os felizes são aqueles que não escrevem, o que deveria deixá-los tristes, mas nós sabemos que isso não acontece, pois tristes, tristes mesmos, somente nós, os que escrevem, porque a tristeza, assim como a saudade, fazem com que a gente se encontre... enfim!"
ResponderExcluirSem comentários...
Passando para comunicar que esta crônica será lida amanhã no Clube do Leitor CCBNB Cariri.
ResponderExcluirSucesso na Bienal, amigo!