sábado, 2 de janeiro de 2010

"ADEUS", crônica inevitável para uma insustentável relação


1º de janeiro de 2010. Esta será, certamente, a última vez em que me sentarei aqui, exatamente aqui, para escrever alguma coisa e enviar a vocês. O primeiro dia do ano, dizem, pede mudanças. Estou em mudança, saindo de uma vez da casa 59, a amarela da Vila Doutor Alencar, casa esta em que habito há já sete anos.


Retornei ao Monte Castelo de minha vida, bairro de meus pais, no qual vivi mais de vinte primeiros anos e onde deixei enterrados meus principais alicerces, lembranças, saudades e esperanças. Principalmente as esperanças, dois coelhos brancos e a gata Marie.


Aluguei a casa geminada (tinha uns sessenta anos), sem garagem, varanda à beira da calçada, à portas fechadas. Era triste, cor cinza. Em cada cômodo um lustre em estilo diferente. Todos feios, cheirando a tristeza e a esquecimento. Interruptores de madeira corriam em fios na parede irregular de tijolos brancos. O telhado enegrecido coberto de entulhos. Os pisos de mosaicos encardidos ou de tacos atacados por cupins. No quintal, a antiga fossa aberta. A casa contornada por combogós. “Deve ser tão quente...”, pensei.


Aluguei-a de uma senhora de 82 anos, hoje falecida, que me convidou gentilmente para conhecer também a sua bicentenária casa num largo terreno do Camará: “Sabia, seu Netto, que ainda guardo o meu pagãozinho?”


Pois bem, reformei a casa. Pintei-a de amarelo. Nas janelas de vidros coloridos, cortinas de pano. Transformamos a fossa — aterrada de entulho do telhado e por tais lustres — num jardim que minhas gêmeas, à época com dois anos, chamavam de “mais feliz”, tendo o cuidado de preparar um canteirinho para cebolinhas. Plantamos uma árvore que trouxe nos ombros e hoje é um grande benjamim que chora suas folhas pelas areias do quintal com um som gostoso de chuva. Plantamos também lacres coloridos e uma espirradeira, local preferido pelos bem-te-vis para montar seus ninhos. Mandei fazer um banco de alvenaria (em forma de “u”) coberto de xadrez vermelho (à noitinha silenciosa esfria tanto...), contornando a área de serviço, e pus, no meio, uma mesa larga formicada e branca para receber os amigos para o café e festejados festivais de sushi com moedas japonesas espalhando a boa sorte na mesa das visitas. Ao final da tarde, ou à noite, colocava as cadeiras na calçada, costume diário ainda na Vila. O vento encanado com cheiro de mar corria frouxo e fresco. Leituras despreocupadas fazia ali, a balançar em minha cadeira de palhinha e molas, quando sabia: “Os melhores lugares da casa são a calçada e o quintal...” E eram. Passavam o rapaz da chegadinha, o algodão doce, o verdureiro, o sapateiro, o picolé, o peixeiro, o homem da “fezinha”... Ficávamos muitas e muitas vezes na calçada até as primeiras horas da manhã. Às vezes, ao lado, uma vizinha executava ao piano a Lua Branca da Chiquinha ou a Bachianas nº 5 de Villa-Lobos. Olhava eu para o céu tão constelado e azul a admirar a dança dolente da copa da árvore em frente à janela da rua.


Há um dia de cinco anos, movido por uma dor que me tirava juízo, decidi dar continuidade a um projeto idealizado há tempos e, então, escrevi meu primeiro livro Um Conto no Passado: cadeiras na calçada. Minha vida mudou. Conheci não a maior parte, mas todos vocês que agora me lêem e que me honram em ter-me como amigo.


Enquanto as meninas cresciam, convidaram-me para escrever no jornal. Ganhei outro prêmio e muitos, muitos livros (não li nem metade). Ia a lançamentos, quase todos, tardava a chegar e, em lua alta e acompanhado por latidos e apitos distantes, descia o caminho de paralelepípedos que consegui colocar ali, após resistir à tentativas de outros moradores de capeá-lo com o negro asfalto. Herança que deixo, agora, mesmo que incompreendido por alguns...


Fecho agora todas as portas para a Vila Doutor Alencar. Fecho-as para sempre. "Sempre é tarde, nunca é tarde"... Digo que não me importo, finjo não me custar nada, mas uma lança de tristeza insiste em me fazer lembrar. Olho para os lados e vejo nascer aqui Américo Lopes, um cearense como eu, sentado em frades de pedra a assistir o espetáculo solar de arraias coloridas. O vejo crescer, apaixonar-se, cometer seus erros e contar histórias que eu já conhecia todas. Por fim, vejo-o morrer para dar-me vida. Ainda aqui, recordo-me d’A Moça do Zepelim Prateado, minha primeira crônica para as segundas d’O POVO, e depois dela todas as outras, em quase três anos (completa em abril), e meu encontro com tantos personagens queridos (entre vivos e mortos) de nossa literatura: Quintino, Moreira, Manelito Eduardo, Zé de Alencar, Clóvis, etc. Fecho as portas também para Pantico, o garoto d’A Bola da Vez, doido para inaugurar sua bola de futebol, e para a Itapuca Villa que, depois do Cadeiras..., consegui salvar em A Casa de Todos e de Ninguém. Fecho as portas para Os Acangapebas, gerado ainda nesta cadeira, lido, relido, mas que não nascerá em tempo de conhecer a nossa casa, assim como os Cadeiras na calçada 2 e 3 e mais dois infantis.


Fecho as portas para o passado, para minha história, e não deixa de incomodar-me o pensamento que outros (estranhos) passarão por esta casa, tomar-lhe-ão conta, e, mesmo sem o saber, se apossarão um pouco de mim.


Acho que não acontecerá, mas se um dia eu passar por aqui e cruzar esta rua estreita (pela outra calçada), penso que a casa estará diferente, talvez mais feliz, melhor utilizada e mais bonita. Quem sabe não nos reconheçamos, eu dê meia-volta em passos ligeiros, descubra que a tal lança se quebrou e que o melhor é esquecer, pois não há menor chance para nós. Nunca houve!


“Suave a luz da lua desperta agora
A cruel saudade que ri e chora!
Tarde uma nuvem rósea lenta e transparente
Sobre o espaço, sonhadora e bela!”

PS: durante alguns dias estarei incomunicável, mas logo, logo darei notícias e enviarei meu novo telefone residencial. Grande abraço.

10 comentários:

  1. A luta continua! Do bom combate, não desistamos!
    Albanisa

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  2. Nostalgia, mudanças,medo e coragem... o texto me lembrou Clarice.

    "Acordei hoje com a tal nostalgia de ser feliz.Eu nunca fui livre na minha vida inteira.Por dentro eu sempre me persegui.Eu me tornei intolerável para mim mesma. Vivo numa dualidade dilacerante. Eu tenho uma aparente liberdade mas estou presa dentro de mim."

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  3. Raymundo, sua sensibilidade me comoveu! Essa casa amarela, construída de amor da Vila Doutor Alencar, terá sempre um pouco de vc e da sua família. Ah fiquei aqui pensando como teria sido bom ter participado dessas noitadas ao redor da sua mesa.
    Um pedacinho de vc fica aí!.... agora, o Monte Castelo te espera cheio de esperança nesse morador que retornou com a alma ainda mais pura!
    Boa sorte !
    Yolanda

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  4. Que venham as mudanças de 2010!!! :)e que sejam bem-vindas!! (Por tudo damos graças!!!)

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  5. Nunca é tarde, há sempre tarde para ser feliz. 2010 com muita saúde e a garra de sempre. Estou aqui para sempre lhe lê e absorver. Viche, a novela das oito rsrs. Abs.

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  6. ... pinte a nova casa de um novo amarelo e bastará: você com sua arte dará luz a ela todo dia.
    Torço pelo teu 2010!

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  7. Hoje acordei mais sozinho,
    Mais trancando em meu jazigo.
    Se fica, inda bem, o amigo,
    Foi-se embora um bom vizinho...

    Abraços tigelíricos.

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  8. Caro Raymundo Netto,

    Que o seu novo lar conceda-lhe continuda inspiração a fim de que possa você seguir brindando a todos nós, seus leitores, com seus agradáveis e sensíveis escritos.
    Marcelo Gurgel

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  9. Interessante vc escrevendo sobre "portas fechadas", nos primeiros contatos que tive com seu trabalho, um texto seu me chamou atenção por falar em "portas abertas". Cheguei a comentar isso por e-mail, lembra?

    De alguma forma (ou fórmula), não sei exatamente qual, você conseguiu deixar os leitores com uma nostalgia estranha... Saudades, no meu caso, de um lugar que só conheci há poucos dias por foto.
    Eu, apaixonada por fotografias, fiquei babando no e-mail que recebi com essa crônica. Acertadamente a foto emoldurou o texto.

    Luz sempre, Ray!

    PS: Vc nunca me falou sobre a gata Marie, traidor!!!

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