Omahr Prabahvanadaba, filósofo das bandas do oriente, passou tanto tempo de sua vida a transcender os limites da matéria, reflexo turvo que a natureza nos impõe, que certo dia, de tanto meditar, desmaterializou-se, fez-se todo pensamento sarapintado em pacotes de luz. Seus escritos, entretanto, deitados em papiros conservados pelo esquecimento em ânforas sob as estrelas — e areias — do Egito, sobreviveram ao seu desaparecimento e gritaram revelações perturbadoras aos maiores doutos da ciência.
Num desses famosos manuscritos, descortina a origem da Terra e da Humanidade. Nele, consta que a grande invenção sobrenatural do mundo caberia a um deus, uma entidade de uma engenhosidade e poderes fabulosos e incognoscíveis que, diante do nada absoluto e enfadante, riscou um palito de fósforo — incrivelmente anterior ao produzido, apenas em 1827, por Johnny Walker (não confundir com o Striding Man) — e pôs-se a criar este mundo. Digo “este”, pois acredita o Mestre Omahr que os demais orbes são apenas esboços malfadados da inexperiência do onipotente que, adiante, criou os elementais do fogo, da água e do ar, e deles advieram as bactérias, unidades sincréticas entre o vegetal e animal que, desprovidas de ego-vacuidades, fixaram-se nas dunas e no lodo e com seu enxerimento atávico logo os transformaram em simples cidades, colônias e florestas de samambaias carboníferas.
Até então, por não querer testemunha nem aplauso, a divindade não criara vida animal. Antes a música, que nada mais é do que matemática cantada. Construída a fantasia do idílio, empunhou terra vermelha e, certo de que dela poderia extrair uma obra de arte ou um penico, optou em moldar o ser humano.
Assim, tomando-se no espelho, o fez. Este ser era, pois, homem-mulher, como ele e os querubins. Logo, lançou vigorosamente a sua criação ao mar, partindo-a em duas metades e completando-as, como cream crackers, em água e sal, yin e yang, dia e noite, quente e frio, positivo e negativo: Adão e Loã.
Loã, mais bela e muito virgem, não aceitou a preferência dos paparicos de deus ao privilegiado e empossado capataz do novo mundo, o jovem Adão, muito bobo, sempre brincando de bilas e correndo atrás de ovelhinhas. Passou a desafiar o pai que, em sua infinita impaciência, condenou-a a pratear o céu entre os mundos em forma de lua, onde até hoje repousa a feiticeira branca, ainda cheia de fases provocativas.
Trocando uma ideia com deus, Adão que preferia a má companhia à solidão, e cansado de masturbar-se em noites de luar, negociou uma de suas costelas — sabia-as muitas e antevia possibilidades... — em troca de uma diva. Soubesse Anatomia, ofereceria o apêndice, cujo único objetivo é dar dinheiro aos cirurgiões.
Deus ex machina, penalizado com a criança, criou a moça Eva, menos bela, magra e falsa como a origem e mais submissa. O supremo, entretanto, condiciona: “Não poderão, de forma alguma, comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal!” Ora, todo bom pai sabe que a proibição só seduz... E assim, o casal viveria num paraíso, não fosse a presença da serpente que, ninguém sabe como, convenceu a curiosa mulher a comer tal fruto do pecado: a manga! Como Eva convenceu Adão a também chupar essa manga, aí já é fácil deduzir...
E deus não perdoou — e quem inventou o perdão, então? — e os expulsou dos seus jardins castigando a mulher com dores no parto e ao homem com o relógio de ponto. E como deus não dá asas à cobra, ao contrário, arrancou-lhe as patas, condenando-a a rastejar-se e a ser odiada pelas mulheres (assim como as lagartas e baratas) até as últimas gerações.
Adão e Eva, sem ocupação e com secular libido, amavam-se debalde (mas ele não tinham sido expulsos do paraíso?), e daí vieram os filhos: Caim e Abel. Os coitados, como numa lagoa azul, não souberam educar seus filhos, não havia escola nem a SuperNanny, e a ira entre eles cresceu a ponto de um irmão matar o outro. O assassino — não havia delegacia nem noticiários populares — foi banido de casa, castigado por deus a carregar chifres — que as más línguas diziam ser herança do pai — mas logo encontrou um lugar melhor (havia outro?) onde ninguém o conhecia, vivendo biblicamente feliz para sempre.
Adão viveu apenas 900 anos. Deveria ter algum viagra natural, pois continuou a gerar filhos que transavam uns com os outros, na mais pura e incestuosa matemática celestial.
O deus, desiludido com a má criação, mas sem dar o braço a torcer — à nossa imagem e semelhança, deveria tê-lo —, agitando as pontas de seu lenço, lançou suspiros ao infinito e clamou: “Que calor! Que desenfreado calor!” E, para encerrar o invento, criou o escritor para que registrasse tudo, sabido que seus seguidores seriam todos pescadores e pastores analfabetos. Nascia a Crônica e o Machado! Mas, ah, que pena, os inventores da imprensa foram os ateus chineses...
Raymundo Netto, autor de O Conto no Passado: cadeiras na calçada e dos infanto-juvenis A Bola da Vez e A Casa de Todos e de Ninguém (ambos pela Edições Demócrito Rocha). É coeditor do CAOS Portátil: um almanaque de contos e da Para Mamíferos e, desde 2007, é cronista convidado do caderno Vida & Arte do jornal O POVO.
Algumas considerações, Ray...
ResponderExcluirAtualmente quase todo Adão é bobo, mas o relógio de ponto não é mais castigo só dele - eu q o diga.
A minha "Feiticeira branca" não está no céu, mas no quintal. Foi assim que minha sobrinha apelidou uma gata alvíssima que minha mãe insiste em chamar de "Sherazade".
Se a Música é a Matemática cantada... Os hits do século XXI são erros de tabuada???
Abraços!