Foto: acervo Raymundo Netto
Foi o arquiteto e paisagista Ricardo Bezerra quem me deu uma pequena publicação sobre os jardins do theatro José de Alencar. Estive ali faz pouco tempo, e fiquei surpreendida pelo que vi. Em torno, uma cidade noturnamente abandonada, pessoinhas perdidas a vagar, talvez pensando em como ganhar a vida, como perder a vida. E depois das grades a maravilhosa arquitetura de ferro, uma delicadeza Art Nouveau, vitoriana, o theatro, emoldurado por um jardim lindo, obra de arte nascida do grande Burle Marx.
Burle Marx foi um inovador, nos anos 1960 ele já falava em ecologia e preservação, denunciava desmatamentos, queimadas... e fundou um olhar novo sobre nossas paisagens. Decerto recebeu da mãe a sensibilidade e o esmero em sua formação. Ela era pianista, cantora, mulher refinada e culta de família pernambucana. Num casarão paulista a mãe cultivava gladíolos, begônias, antúrios, e uma babá, Anna, ensinava ao menino o segredo do cultivo de plantas. Já morando no Rio, o rapazinho colecionava espécies no quintal e aprendia enxertia, hábitos, reprodução dos vegetais. Um vizinho que era arquiteto de renome observava seu talento e convidou-o a criar o jardim de uma casa que projetara. Era Lúcio Costa. Dessa amizade floresceu o paisagista e o gosto pelo Modernismo. Tarsila do Amaral chamava o rapaz de “poeta das plantas”.
Burle Marx viu, em estufas de jardins botânicos europeus, espécies brasileiras iluminadas por um olhar exótico, plantas que aqui eram desprezadas, eram “mato”. Os jardins brasileiros seguiam concepções clássicas, como as de mestre Valentim, do século 18, Glaziou, e os parques, vergéis de quintas, palacetes, nasciam de inspiração francesa e inglesa. Só em meados do século vinte apareceram em nossos jardins as primeiras helicônias, marantas, filodendros, da flora tropical. Burle Marx disse que foi a leitura de Os sertões, de Euclides da Cunha, que abriu seus olhos para a nossa flora, e o levou a descobrir essa riqueza em viagens por diferentes regiões do Brasil. Em 1934, um de seus primeiros trabalhos, aos vinte e cinco anos, foi a praça Euclides da Cunha em Recife, onde criou um bosque educativo com plantas do sertão nordestino, povoado de macambiras, xique-xiques, mandacarus...
Trabalhou muito no Nordeste. Nos anos sessenta fez seu primeiro jardim em Fortaleza, na residência de Benedito Macedo, começando aí o paisagismo moderno de nossa cidade. Depois fez paisagens para as avenidas Aguanhambi, José Bastos, para o Palácio do Bispo... Deixou brilhantes discípulos, como Ricardo Marinho. Em 1973 ele criou para o theatro um jardim contemplativo, que emoldurava e valorizava a edificação, usando espelho d’água, canteiros, calçadas, jucás, pau-ferro, oitizeiros, leques-de-fiji, pau-brasil florido de amarelo, e a lindíssima cascata de tumbérgia a cobrir o árido paredão de um prédio vizinho. Esse jardim, de difícil manutenção, durou pouco. Nos anos noventa o governador Jereissati teve o bom gosto de convidar Violeta Arraes para secretária de Cultura, e essa cearense do Crato, figura de grande valor para nossa história, reformou o theatro e convidou Burle Marx para refazer o jardim, em conceito mais utilitário. É o jardim que vemos hoje, histórico, com todo o esplendor.
Com a percepção de um artista, conhecimento de botânica, de ecologia, com o ideal de anotação de nossas espécies, e de educação ambiental dos moradores das cidades, Burle Marx fundou um novo conceito de jardim, que ao mesmo tempo é paisagem de nossa flora e presença respeitosa na cidade, a vesti-la de beleza. Como um pintor ele cria manchas coloridas, arranja pedras, cascatas e espelhos, harmoniza volumes... Ordena sutilmente a paisagem, almejando despertar o amor pela natureza. E, realmente, alguns de seus jardins provocam uma admiração tão imensa que nos deixa amorosos e suspensos.
Ricardo Bezerra, que é também músico, multiartista como Burle Marx, faz parte de um grupo que pesquisa jardins desse nosso paisagista maior, num trabalho que cumpre a Carta de Florença, firmada nos anos oitenta, para recuperação, restauração, preservação dos jardins históricos em todo o mundo. Um jardim não é apenas um jardim... Ele é higiene, educação e arte. Ameniza o clima e purifica o ar, acalma, civiliza, é meio de instruir e transmitir conhecimentos, e manifesta cultura, saber, arte. Oferece ao morador da cidade o contato com a natureza, e, mais profundamente, um encontro com nosso paraíso perdido.
ANA MIRANDA é autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. Contato: amliteratura@hotmail.com.
Burle Marx foi um inovador, nos anos 1960 ele já falava em ecologia e preservação, denunciava desmatamentos, queimadas... e fundou um olhar novo sobre nossas paisagens. Decerto recebeu da mãe a sensibilidade e o esmero em sua formação. Ela era pianista, cantora, mulher refinada e culta de família pernambucana. Num casarão paulista a mãe cultivava gladíolos, begônias, antúrios, e uma babá, Anna, ensinava ao menino o segredo do cultivo de plantas. Já morando no Rio, o rapazinho colecionava espécies no quintal e aprendia enxertia, hábitos, reprodução dos vegetais. Um vizinho que era arquiteto de renome observava seu talento e convidou-o a criar o jardim de uma casa que projetara. Era Lúcio Costa. Dessa amizade floresceu o paisagista e o gosto pelo Modernismo. Tarsila do Amaral chamava o rapaz de “poeta das plantas”.
Burle Marx viu, em estufas de jardins botânicos europeus, espécies brasileiras iluminadas por um olhar exótico, plantas que aqui eram desprezadas, eram “mato”. Os jardins brasileiros seguiam concepções clássicas, como as de mestre Valentim, do século 18, Glaziou, e os parques, vergéis de quintas, palacetes, nasciam de inspiração francesa e inglesa. Só em meados do século vinte apareceram em nossos jardins as primeiras helicônias, marantas, filodendros, da flora tropical. Burle Marx disse que foi a leitura de Os sertões, de Euclides da Cunha, que abriu seus olhos para a nossa flora, e o levou a descobrir essa riqueza em viagens por diferentes regiões do Brasil. Em 1934, um de seus primeiros trabalhos, aos vinte e cinco anos, foi a praça Euclides da Cunha em Recife, onde criou um bosque educativo com plantas do sertão nordestino, povoado de macambiras, xique-xiques, mandacarus...
Trabalhou muito no Nordeste. Nos anos sessenta fez seu primeiro jardim em Fortaleza, na residência de Benedito Macedo, começando aí o paisagismo moderno de nossa cidade. Depois fez paisagens para as avenidas Aguanhambi, José Bastos, para o Palácio do Bispo... Deixou brilhantes discípulos, como Ricardo Marinho. Em 1973 ele criou para o theatro um jardim contemplativo, que emoldurava e valorizava a edificação, usando espelho d’água, canteiros, calçadas, jucás, pau-ferro, oitizeiros, leques-de-fiji, pau-brasil florido de amarelo, e a lindíssima cascata de tumbérgia a cobrir o árido paredão de um prédio vizinho. Esse jardim, de difícil manutenção, durou pouco. Nos anos noventa o governador Jereissati teve o bom gosto de convidar Violeta Arraes para secretária de Cultura, e essa cearense do Crato, figura de grande valor para nossa história, reformou o theatro e convidou Burle Marx para refazer o jardim, em conceito mais utilitário. É o jardim que vemos hoje, histórico, com todo o esplendor.
Com a percepção de um artista, conhecimento de botânica, de ecologia, com o ideal de anotação de nossas espécies, e de educação ambiental dos moradores das cidades, Burle Marx fundou um novo conceito de jardim, que ao mesmo tempo é paisagem de nossa flora e presença respeitosa na cidade, a vesti-la de beleza. Como um pintor ele cria manchas coloridas, arranja pedras, cascatas e espelhos, harmoniza volumes... Ordena sutilmente a paisagem, almejando despertar o amor pela natureza. E, realmente, alguns de seus jardins provocam uma admiração tão imensa que nos deixa amorosos e suspensos.
Ricardo Bezerra, que é também músico, multiartista como Burle Marx, faz parte de um grupo que pesquisa jardins desse nosso paisagista maior, num trabalho que cumpre a Carta de Florença, firmada nos anos oitenta, para recuperação, restauração, preservação dos jardins históricos em todo o mundo. Um jardim não é apenas um jardim... Ele é higiene, educação e arte. Ameniza o clima e purifica o ar, acalma, civiliza, é meio de instruir e transmitir conhecimentos, e manifesta cultura, saber, arte. Oferece ao morador da cidade o contato com a natureza, e, mais profundamente, um encontro com nosso paraíso perdido.
ANA MIRANDA é autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. Contato: amliteratura@hotmail.com.
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