"Ibiapaba, que na língua dos naturais quer dizer Terra Talha, não é só uma serra, como vulgarmente se chama, senão muitas serras juntas, que se levantam ao sertão das praias de Camuci, e mais parecidas a ondas de mar alterado que a montes, se vão sucedendo, e como encapelando umas após das outras em distrito de mais de quarenta léguas: são todas formadas de um só rochedo duríssimo, e em partes escalvado e medonho, em outras cobertas de verdura e terra lavradia, como se a natureza retratasse nestes negros penhascos a condição de seus habitadores, que, sendo sempre duros e como de pedras, às vezes dão esperanças, e se deixam cultivar".
Assim começa o padre Vieira sua descrição da serra de Ibiapaba, uma obra-prima dentro dos escritos instrumentais do jesuíta, a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba. Ele subiu a serra em março de 1660, acompanhado de três sacerdotes e vários índios "tobajaras e pernambucos", em vinte e um dias de caminhada. Os padres descalços, com os pés em chagas, subindo mais com as mãos que com os pés, chegaram ao alto numa "quarta-feira de trevas". A região era conflagrada, fora ocupada por franceses, holandeses, e era ponto estratégico nas políticas coloniais portuguesas. Os missionários fizeram procissão, oficiaram, converteram, levaram índios a largarem suas "concubinas", Vieira casou-os com a "mulher, que por direito era legítima", em uma festa de doze dias e doze noites. Ele criou o cargo de Executor Eclesiástico, deixando-o, registrado em papel, ocupado por um índio principal com a missão de fazer os indígenas irem à igreja, cumprirem com "outras obrigações de cristãos, e os castigar e apenar, se for necessário". Tudo isso li, e reli, por mais de duas décadas, pensando em escrever algum dia um romance passado na região. Que, finalmente, pude conhecer, convidada a participar do animado festival literário do município.
Quase não pude conter meus sentimentos, ao chegar ao pé dessa serra descrita pelo padre Vieira. As pedras escalvadas se erguiam acima de nós como um monumento à natureza, guardando mistérios de sua formação tão abrupta. E ali, de onde eu admirava as serras, era um lugar ainda mais precioso sob o olhar literário. Do alto das rochas despencava um riozinho de águas brancas que se desfazia como um véu, juntando-se novamente o orvalho em água nos tanques entre pedras, bem ao pé da serra. Ali vivia Iracema, a virgem dos lábios de mel andava naquelas matas e banhava-se naquela bica. Ali começa a obra prima de José de Alencar. Ali, "mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara." Ali, o corpo coberto do aljôfar da água, os cabelos ainda úmidos e onde pousavam flores de acácias, Iracema encontrou Martim pela primeira vez. Ipu, uma pequena e linda cidade, com seu casario de certa maneira preservado, tem esta herança literária, este tesouro, de ser cenário em textos de dois dos maiores autores da literatura. A professora Ingrid Schwamborn falou-me sobre a ideia de se criar, nos moldes do Caminho de Santiago, o Caminho de Iracema. Como sabemos, Iracema saiu dali de Ipu, acompanhando Martim. Seus caminhos começam na serra de Ibiapaba e vão até as dunas de Mucuripe em Fortaleza, passam a montanha despida de arvoredo e tosquiada como a capivara, Ibiapina; as margens do Camocim e do Acaracu; a montanha com tantas frutas que se enchia de moscas, a Meruoca; as areias onde urubus pastavam de dia e de noite retornavam ao milho, Uruburetama; as voltas contínuas e enganosas do Mundaú; a foz do rio repleto de traíras; as margens do Soipé onde abundavam pacas, macios jacus, veados; o rio Taíba cujas margens abrigavam porcos-do-mato; Cauípe, onde se fabricava vinho de caju. Ainda, o lugar onde Iracema foi "abandonada" pelo guerreiro branco, a lagoa de Messejana. Há várias incursões pelo interior: o casal visita o avô de Poti na serra de Maranguape; Iracema toma banho na lagoa de Porangaba, vai para a lagoa de Sapiranga; com o esposo conhece Pacatuba, Guaiuba. Quando Martim vai à guerra, passa por Aquiraz, trava batalha contra os tabajaras e os franceses em Camucim, outra batalha é travada em Jericoacoara... Nem as grutas de Ubajara ficaram de fora. Como vemos, a geografia de Iracema, escolhida por José de Alencar, é quase um perfeito roteiro para conhecimento da costa e parte do sertão do Ceará. Foi escolhida com sensibilidade e lucidez, como tudo o que tem o toque do romancista.
ANA MIRANDA escreveu Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. amliteratura@hotmail.com.
Assim começa o padre Vieira sua descrição da serra de Ibiapaba, uma obra-prima dentro dos escritos instrumentais do jesuíta, a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba. Ele subiu a serra em março de 1660, acompanhado de três sacerdotes e vários índios "tobajaras e pernambucos", em vinte e um dias de caminhada. Os padres descalços, com os pés em chagas, subindo mais com as mãos que com os pés, chegaram ao alto numa "quarta-feira de trevas". A região era conflagrada, fora ocupada por franceses, holandeses, e era ponto estratégico nas políticas coloniais portuguesas. Os missionários fizeram procissão, oficiaram, converteram, levaram índios a largarem suas "concubinas", Vieira casou-os com a "mulher, que por direito era legítima", em uma festa de doze dias e doze noites. Ele criou o cargo de Executor Eclesiástico, deixando-o, registrado em papel, ocupado por um índio principal com a missão de fazer os indígenas irem à igreja, cumprirem com "outras obrigações de cristãos, e os castigar e apenar, se for necessário". Tudo isso li, e reli, por mais de duas décadas, pensando em escrever algum dia um romance passado na região. Que, finalmente, pude conhecer, convidada a participar do animado festival literário do município.
Quase não pude conter meus sentimentos, ao chegar ao pé dessa serra descrita pelo padre Vieira. As pedras escalvadas se erguiam acima de nós como um monumento à natureza, guardando mistérios de sua formação tão abrupta. E ali, de onde eu admirava as serras, era um lugar ainda mais precioso sob o olhar literário. Do alto das rochas despencava um riozinho de águas brancas que se desfazia como um véu, juntando-se novamente o orvalho em água nos tanques entre pedras, bem ao pé da serra. Ali vivia Iracema, a virgem dos lábios de mel andava naquelas matas e banhava-se naquela bica. Ali começa a obra prima de José de Alencar. Ali, "mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara." Ali, o corpo coberto do aljôfar da água, os cabelos ainda úmidos e onde pousavam flores de acácias, Iracema encontrou Martim pela primeira vez. Ipu, uma pequena e linda cidade, com seu casario de certa maneira preservado, tem esta herança literária, este tesouro, de ser cenário em textos de dois dos maiores autores da literatura. A professora Ingrid Schwamborn falou-me sobre a ideia de se criar, nos moldes do Caminho de Santiago, o Caminho de Iracema. Como sabemos, Iracema saiu dali de Ipu, acompanhando Martim. Seus caminhos começam na serra de Ibiapaba e vão até as dunas de Mucuripe em Fortaleza, passam a montanha despida de arvoredo e tosquiada como a capivara, Ibiapina; as margens do Camocim e do Acaracu; a montanha com tantas frutas que se enchia de moscas, a Meruoca; as areias onde urubus pastavam de dia e de noite retornavam ao milho, Uruburetama; as voltas contínuas e enganosas do Mundaú; a foz do rio repleto de traíras; as margens do Soipé onde abundavam pacas, macios jacus, veados; o rio Taíba cujas margens abrigavam porcos-do-mato; Cauípe, onde se fabricava vinho de caju. Ainda, o lugar onde Iracema foi "abandonada" pelo guerreiro branco, a lagoa de Messejana. Há várias incursões pelo interior: o casal visita o avô de Poti na serra de Maranguape; Iracema toma banho na lagoa de Porangaba, vai para a lagoa de Sapiranga; com o esposo conhece Pacatuba, Guaiuba. Quando Martim vai à guerra, passa por Aquiraz, trava batalha contra os tabajaras e os franceses em Camucim, outra batalha é travada em Jericoacoara... Nem as grutas de Ubajara ficaram de fora. Como vemos, a geografia de Iracema, escolhida por José de Alencar, é quase um perfeito roteiro para conhecimento da costa e parte do sertão do Ceará. Foi escolhida com sensibilidade e lucidez, como tudo o que tem o toque do romancista.
ANA MIRANDA escreveu Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. amliteratura@hotmail.com.
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