Úrsula, em
seu desfile e graça, ouvia tudo, percebia os olhares, sabia ser cobiçada, e
achava justíssimo, afinal, muito bela, seu corpo era até confessamente invejado
pelas colegas que repetiam a bulir em seu relevo tonificado por Deus: “Amiga, ah,
se eu tivesse um corpão desses...”
Nas suas despretensiosas
passagens pelas fuças dos rapazes – suor descendo-lhe o pescoço, a blusa fina
encharcada, a retaguarda que era quase uma bateria de Escola de Samba – era de costume
as cantadas, os convites indecorosos, a oferta de números de celular.
Contudo, o
que nos importa saber é que, logo ali do outro lado desse salão, encontramos
outra pessoa, um homem muito magro, comprido, feio até, do time “peso leve”,
daqueles que mais repetem do que puxam ferro, que não chamam nenhuma atenção
num ambiente desses, nem a nossa, não fosse por uma particularidade: é ele o marido
de Úrsula!
Sim,
Leopoldo, no passado não distante, num ato de coragem despropositada ou durante
uma oportuna vantagem de momento, conseguiu levar Úrsula ao altar. Mas, para
resumir, ela seria profundamente infeliz nessa união. Não admirava o marido,
não curtia a sua companhia, não sentia por ele a mínima atração. Achava mesmo
que estava era doida quando consentiu nesse casamento, para ela, uma expiação.
Ali mesmo,
naquela academia, só chegava sozinha, ele que fosse depois, não queria ninguém no
seu pé. Pior: não permitia que lhe dirigisse a palavra, pois as pessoas – que
nem sabiam serem eles casados – poderiam achar que ele a vigiava: “Não me
envergonhe, senão eu não sei do que serei capaz!”
Leopoldo a
obedecia fiel e mansamente. Evitava falar com ela e assistia com muita
resignação aos olhares lascivos sobre aquele corpo que, até então, achava possuir.
Por outro lado, compreendia os rapazes, pois ele também o desejava e, há
tempos, não conseguia sequer aproximar-se sem o risco de morte.
Noite
dessas, estava ela inconsolável, buscando roupa para ir a um shopping.
Insatisfeita, quase chorava, diante da constatação das “malditas celulites”.
Leopoldo, com a meiguice de uma mãe, tentou contornar: “Meu bem, só quem acha celulite
é mulher. Homem não repara nisso, não...” Para quê? Ela começou a agredi-lo com
cabides, porta-retratos, vasos e o que mais tivesse a mão: “Saia daqui,
cafajeste! Você não entende nada de mulher meeesmo!!!” Então, mais uma vez o
marido se recolhia, rabinho entre as pernas, e voltava ao trabalho, a sua
cachaça de esquecer a vida de rejeição e humilhações impostas pela mulher
amada.
Tanto
trabalhou e produziu que um dia foi chamado pela Diretoria da empresa. Ganhara
um aumento, uma promoção, proposta de morar no exterior. Naquela noite, nem
dormiu.
Na manhã
seguinte, Leopoldo estava na academia, quando, subitamente, Úrsula atravessou
ligeira o Salão sem dar a menor bola para o grupo de rapazes, e se dirigiu a
ele carinhosa, trazendo-lhe um squeeze
de água gelada. Deu-lhe um beijo, um abraço apertado, disse que não fosse
embora sem ela, e voltou às máquinas.
A turma de rapazes
não entendeu nada. Eles olharam basbaques para aquele nunca notado fiapo de
homem: como? quando? por quê? E nós?
Leopoldo
olhou para eles e, pela primeira vez, abriu um sorriso luminoso e seguro. Mirou
aquela mulher linda, soberba, desmanchando-se em suor divinamente perfumado no
reles colchonete e, voltando-se aos rapazes, balançou a cabeça com desdém: “Celulite
demais!”
Maravilhosa. E você sabe que de crônica eu entendo.
ResponderExcluirHahaha Obrigado, Sonia. Sim, você é bem dizer casada com "uma"... e das melhores.
Excluirsentindo falta desse modo peculiar de escrita. muito bom. parabéns
ResponderExcluirObrigado, Lucirene. Tive que dar uma pausa a essas produções nos últimos meses, mas vamos tentando... rsrs Abração
ExcluirRaymundo, você escreve dissecando, mostrando que tem lido muito, enquanto apenas observa a rotina da alma humana e a transfere para uma página em branco.
ResponderExcluirCayman, muito obrigado pela leitura, meu amigo, e pelo seu retorno. Abs
ExcluirA criação divina; a criação literária. Da primeira tantos Leopoldos, tantas Úrsulas. Da segunda ( e aqui não há absurdo) tantos Machados, Salgueiros, Campos, Nettos e tantas Cecílias, Lygias, Tércias... Na primeira, o barro; talvez por isso tão plástico ao sabor das alegrias e das dores, das grandezas e das ninharias. Na segunda, a palavra; por causa dela esse exercício de metacriação: haveria, falando assim ao rés do barro, melhor matéria de criação literária que o próprio barro? E o barro se fez palavra que por sua vez tem soprado esse pó que se aglutina em academias de suor e academias de vida dia a dia. Valeu, Raymundo. Tu é do tamanho do mundo que alcanças com a palavra.
ResponderExcluirProf. Armando, estava sentindo falta de seus comentário filosóficos e poéticos. Feliz 2021. Acho que Deus caprichou no barro da Úrsula. Provavelmente é italiano. rsrs
ExcluirQualidades que marombados jamais estenderão, rsrsrsrs...
ResponderExcluirNunca. Jamais... hahaha Muito obrigado.
ExcluirEssa crônica é uma verdadeira "Úrsula", malhada, perfeita.
ResponderExcluirNem me fale, essa Úrsula me deixou sem dormir também. Hahaha Obrigado, querida.
ExcluirSe a Úrsula é gostooosa, essa crônica é deiciooosa! Espirituosa, muito bem urdida e contemporânea. "Cafuçu" é ótimo! Desde os 10 anos, nos anos 60, que não ouvira mais essa expressão popular e e de som engraçado.
ResponderExcluirMuuuito obrigado, amigo Tião. Pois é, vamos ressuscitar esses termos gostosos de nosso vernáculo matuto. Abração.
ExcluirBom demais, Raymundo Neto. A vingança de Leopoldo foi cruel. Segurei até o final para não dar spoiler em mim mesmo. Você está cada vez melhor. Tenho que ler mais as suas crônicas, seus livros, seus escritos. /Juazeiro do NOrte-CE
ResponderExcluirGeraldo, muito obrigado pela leitura, meu amigo. Faz tempo que não tinha notícias suas. Fico feliz por saber de você. Se quiser ler as crônicas, basta seguir por aqui. Abração.
ExcluirRaimundo , cada vez melhor, prendendo sempre a atenção do leitor de modo preciso , como um atacante objetivo , que sem perder , parte rumo ao gol e atinge o objetivo do jogo . Isso é a principal característica de um bom contista e vc a tem exercido com maestria muito amiúde. Feliz por vc , feliz pela literatura . Sinta-se fortemente abraçado por aquele que muito lhe quer bem . Beto Paiva.
ResponderExcluirProf. Beto Paiva, um grande abraço com a gratidão pelas palavras de amizade.
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