segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

"Linguagem", de Raymundo Netto para O POVO


“Mulher intelectual não pega homem!” Ouvira isso inúmeras vezes, mas, naquela noite de coração desértico, quente e vazio, seria diferente.

Ao espelho, vestia, quase em lágrimas, a roupa mais fatal. O próprio corpo queria saltar do vestido, ela não se reconhecia, envergonhava-se, mas nada importava mais!

Chegou a um pub. Pouca luz, muita fumaça, ar alcoólico e frenético barulho. Por ela, se jogaria na barra de pole dance, mas dirigiu-se ao bar, pediu uma bebida, a mais forte, que guardou entre os dedos até quando chamaram ao pequeno palco o poeta, um rapaz magrinho de cabelo avermelhado. Ele pegou o microfone, olhou para o público desatento e declamou aos gritos o seu poema.

Em meio à barulheira, o tilintar de copos e as risadas expressivas, ele continuava uma falação ardente, suspirosa e inútil, enquanto ela, mesmo quando alguém já apalpava a sua bunda, fitava-o. Não se sabe se por um instinto atávico e autossabotador, certo é que sentira tanto amor ali, capaz de encher até buraco sem fundo.

Ao final, aproximou-se dele, em uma indisfarçável timidez. Imersos no alvoroço, se olharam em risinhos desnecessários, quando ela deixou escapar: “Estou sem calcinha.”

Ele riu desconcertado: “Que comentariozinho mais exótico... ”

Extasiada, respondeu: “A um cantinho mais erótico? Agora? Sim, podemos ir, sim.”

Ele insistiu ao seu ouvido: “Não, eu disse exótico!” Ela, pasma consigo mesma, engoliu de vez o trago e emendou: “Sim, eu também. Foi o que eu disse... exótico?”

Marcaram então de se encontrar no sábado próximo, quando ele a levou ao zoológico para ver o recinto dos pandas. Era alucinado por pandas. “Que fofo!”, ela pensou.

Após uma hora de jujubas, aulas de cultura chinesa, veganismo e pandas, ela encorajou-se e tascou: “Sim, mas... você não gostaria de ir agora a um motel?”

Ao convite inesperado, ele murmurou: “Eu preciso que saiba de uma coisa...” Ela adiantou-se: “Você é gay? Ai, meu Deus, esse amor por pandas...”, quando ele acudiu: “Não, não sou gay... Eu sou virgem!” Aliviada, ou quase, estranhando ainda a resistência, pensou que seria uma experiência singular. Ele insistiu: “Mas muito virgem. Virgem demais. Nunca beijei uma mulher. Apenas espelhos, dorso da mão...” Ela nem quis saber e o trouxe à boca, quando, naquele momento tão inaugural, em vez do aguardado beijo recebeu dele uma tremenda lambida.

Ela sentiu um nojo colossal: “Que foi isso?” Ele queria mais. Nova tentativa. A lambeu outra vez, desta vez o rosto inteiro. O poeta tinha uma língua abundante, descontrolada. Tomara gosto e não pararia mais, se ela não se lembrasse de um falso e emergente compromisso. Ele compreendeu. Segurando a baba e com os olhos brilhantes, insistia: “Quando nos veremos outra vez? Quando?”

Não sabia o motivo, se por ser de Humanas ou pelo desespero de quem se afoga, mas o recebeu em sua casa.

Desta vez, sem cafés, enxerimento na estante de livros, entre outras preliminares, foi ele que se atirou sobre ela, afoito e covardemente, num apetite absurdo, rasgando-lhe as roupas e lambendo-a inteira, dos pés à cabeça e vice-versa. E a lambeu tanto, mas tanto, por horas sem fim, que pela manhã não havia mais nenhum pedacinho desejoso dela para contar história.





 


 

4 comentários:

  1. Era um "panda" ou um cão 🐕
    Kkkkk, miséria!
    Parabéns, Raymundo. Você é excelente.

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    1. Um lambedor... propriamente dito. Sabe-se lá que raça é essa... rsrsr Obrigado, Lucirene.

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  2. Dom Netto, perdoa-me a cara lambida! Não tenho certeza se a locução cabe aqui. Mas, quando se passa na barbearia, sai-se de cara lisa; quando se passa num lavatório, sai-se de cara lavada. Então, quando se lê LINGUAGEM, de Raymundo Netto, sai-se de cara lambida. Barbearia e lavatório não resumem o sentido das respectivas locuções; no entanto, não há escapar a uma lambida da língua absurdamente abundante do cronista de ... primeira. Linguagem é uma terra propícia ao exótico, como ao erótico. Então , quando as línguas, a verbal e a carnal, entram em cena, no palco da vida, a depender de pressupostos e de experiência de vida, as caras podem ser lisas, lavadas, lambidas, de espanto, ... Em linguagem, porque há a verbal e a carnal, uma lambendo a outra, passar de exótico a erótico, e vice-versa, é só uma questão de troca de intenção. E se a intenção é proferida por língua, seja verbal, seja carnal, de primeira viagem, a cara é de ..ahn! Tá na cara que linguagem também é terra de locução. Se houve a mulher melancia, porque não haveria de haver a mulher sorvete? E o homem panda? Linguagem é mesmo terra de possíveis que se lambem. As línguas, verbal e carnal, fazem o encontro, às vezes desencontrado se a locução é de primeira, do exótico, do erótico, das locuções. Raymundo Netto, que certamente lambe seus textos antes de publicá-los, é cronista de segunda ( -feira ), é ponderado, só vai na certa. Não é afoito como o homem panda; não se derrete como a mulher sorvete. Ao cabo, na condição de leitor degustador das lambidas textuais de seu Raymundo, cabe-me melhor a cara de satisfação do que a cara lambida. Obrigado, seu Netto, por esta textura linguística erótico -exótica!

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  3. Prof. Armando Lucas, um dia teremos que publicar essas humoradas e reflexivas resenhas. Muuuito legal. rsrsrs Abs

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