Há 30 anos aguardava o grande amor de sua vida.
Ainda jovem, diante da angustiante sensação de que não havia neste mundo um rapaz que a agradasse, Grace sucumbiu à tentação de consultar uma vidente: “Encontrarei alguém que me sirva, que eu possa amá-lo?” A vidente, uma idosa de olhos quase brancos, nariz adunco, queixo proeminente e de poucos dentes, escondia o cume da cabeça e boa parte de seu rosto e pescoço por um xale escurecido, dando-lhe aspecto de ave agourenta. Seus dedos magros e nodosos espalhavam de forma circular as cartas na mesa, até que sua mão terrivelmente fria apertou o pulso da moça, enquanto apontava para uma das cartas: “Ali está ele... Que homem lindo... Ele está vindo, vindo...”
Grace,
antes arrependida de estar ali naquele ambiente inóspito, esqueceu o pavor e só
perguntava: “Onde? Vindo de onde?” A velha se recolhia lenta e estranhamente no
espaldar da cadeira, envolvendo-se em sombras: “De navio. Ele não é daqui.
Estrangeiro. Está vindo. De navio. Vindo...” Emudeceu, não respondendo mais às
perguntas da moça eufórica: “Logo vi que só podia ser de fora... Aqui não tem
um que preste!” E saiu alegre e saltitante à rua, deixando para trás a velha a
coçar o queixo com o indicador trêmulo: “Está... vindo...”
No entanto, não vinha, nem veio. Nada
de Grace encontrar seu amado prometido.
Anos depois, não haveria um dia sequer no
qual ela não desse uma volta no cais com o pretexto de ver o mar, tomar um
café, curtir o vaivém de pessoas ou assistir ao pôr do sol, na esperança de dar
de cara com o homem da carta. Mas ninguém a interessava. Ou melhor, ninguém
sequer se parecia com o homem que ela desenhou em sua mente. Voltaria à
vidente, mas do velho cortiço não restava mais nada. Desesperou-se!
Com o tempo, obcecada pelo anunciado amor,
a sua presença no casamento das amigas chegava a azedar. Era inconveniente, via
defeito em tudo, agourava o amor alheio, embriagava-se, de forma que foi
isolada em seu sonho de amor romântico.
Passadas décadas desde a profecia da
vidente, Grace entrou em um velho bar do cais do porto. Cruzara com ele
diversas vezes, mas nunca se interessara por ele devido ao ar promíscuo exalado
por seus frequentadores: pescadores, marinheiros e prostitutas. Naquele dia,
porém, isso não mais a incomodava. Entrou, sob uma cortina de olhares curiosos e
de cantadas maliciosas, e sentou-se no canto do balcão amadeirado.
O balconista, um senhor de uns 60 anos, aproximou-se e advertiu-a: “Acho que a senhora não é bem o público daqui...” Ela corrigiu: “Senhorita. E me dê uma cerveja.”
E estava ali, sem mais
esperanças, entretida na fumaça de seu cigarro, quando correndo o olhar pela
parede viu uma galeria de fotos e, entre elas, reconheceu a de seu amado.
Gelou! Gritou pelo balconista e perguntou quem era aquele homem. Ele estranhou:
“Esse quadro foi uma homenagem à equipe de um navio que naufragou na costa há
uns 30 anos. Esse aí é o ‘Charles Francês’. Chamavam ele assim. Era oficial.
Afogou-se.” Grace, atônita, caiu ali mesmo em lágrimas lancinantes.
Durante dias, não saiu de casa. Quando
não estava adormecida, envolvida em cobertores, chorava. Sentia não haver mais
sentido em sua vida. Sua busca findara tragicamente. Contudo, uma madrugada, como
se delirante, correu para aquele bar. Estava fechado. Com uma banqueta, quebrou
o vidro da janela e adentrou. Caminhou vagarosamente pelo corredor escuro até
postar-se estática diante da foto de Charles. Acendeu o isqueiro e a admirava
com ternura até quando, de súbito, a beijou.
Uma corrente de vento entrou pela
janela derrubando garrafas, copos e alguns quadros da parede. Com ela, um som
sinistro, quase gemido, quase gargalhar, tomava todo o ambiente, também
envolvido por uma névoa cinzenta. Nesse instante, Grace abriu os olhos e, para
seu espanto, diante dela estava o capitão Charles.
Ela, sem acreditar, com os olhos
marejados, sorriu emocionada: “Eu esperei você por toda a minha vida... Ah, eu
sempre te amei.”
O homem, orgulhoso de si, pegou uma
garrafa de uísque e a levou para o salão, onde estirou-se numa espreguiçadeira.
Colocou as pernas em um banco, apresentando as botas envolvidas em algas e
cheirando a peixe. Foi quando lhe dirigiu as primeiras palavras: “Chéri, tirre
as minhas bottes.” Grace não acreditou. “Como é que é?” Ele insistiu veemente:
“Tirre-as já, mulher! Que diable!”
Grace, boquiaberta, deu meia-volta, saltou
pela janela e, encontrando o primeiro estranho à sua frente, deu-lhe com muito
gosto aquele beijo tão aguardado por mais de 30 anos...
Que maravilha poder embarcar em um sonho e depois, perceber que a realidade é bem melhor! Only you, Raymundo Netto! Parabéns! Adorei!
ResponderExcluirObrigado pela gentileza da leitura, querida Ângela.
ExcluirO comentário é da Angela Gurgel
ResponderExcluirMesmo morto o desgraçado não mudou.
ResponderExcluirHahaha E não é, Almir. Triste.
ExcluirOh história boa de se contar.
ResponderExcluirAlmir Mota
ResponderExcluirQue bom que ela acordou desse sonho. Kkkk .Raymundo você é "o cara". Muito bom. Aplausos 👏 👏
ResponderExcluirObrigado, querida Lucirene. Abração.
ExcluirWhat a disGrace! Continua havendo mais reviravoltas entre o início e o fim de um texto de Raymundo do que sonha nossa vã leitura. [ Não! A leitura de Raymundo não é vã. Esperei por ela na ida ao cais, à beira do cais, na volta do cais. Desde o ano passado. E ela chegou. ( __ Que digressão! )]O VÃ comparece aqui para que não se fuja da tradição filosófica. E a tradição é mesmo vã. Em especial a que nutre o sonho de que o que está distante é melhor do que o que está perto, de que o que é de fora tem mais " grace " do que o que é de dentro. What a GRACE! Raymundo tá pertinho da gente; é clarinho __ se o que importa é a claridade __, tendente a galeguinho; é mesmo um gato da escrita, mas não precisa de BOTTAS para percorrer léguas e léguas de linhas. Mas há na filosofia, na filosofia desta terra, uma tradição que não é vã. Está em seu estado de GRACE em estado de ALUCINAÇÃO. Sim, o melhor " ... delírio é a experiência com coisas reais ". Beijar um sapo ... Ops ... um estranho de carne e osso pode dar alguma GRACE à vida; beijar um príncipe só traz DRISGRACE como se sabe pela tradição da vida. Deixemos a alucinação do sonho pendurada na parede e vivamos a alucinação de suportar o dia a dia. Que Raymundo nos sapeque muitos beijos! Porque " viver é melhor que sonhar". Valeu mais um beijo, seu Netto danadinho!
ResponderExcluirHahahaha
ExcluirMaravilha... e achei a estória real, acredita?
ResponderExcluirVocê deve ser a Fátima Abreu, né? rsrs Meio que é...
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente! A propósito, Raymundo Netto, eu estava lendo (e, em alguns casos, relendo) crônicas de seu livro "Crônicas absurdas de segunda", exemplar que adquiri em 13.7.2018, quando, trazido pela nota de rodapé n.º 65, página 144, vim parar aqui. Sou advogado e escritor paraense e, a partir de agora, seguidor de teu blogue.
ResponderExcluirValdinar, bom dia. Você é paraense, mas reside no Ceará? Fico feliz que tenha o "Crônicas Absurdas de Segunda" e ainda mais feliz por também acompanhar o blog. Seja bem-vindo. Entre em contato comigo pelas redes sociais, pois fica mais fácil a nossa comunicação. Pelo Facebook (@raymundonetto) e/ou por Instagram (@raymundonetto67). Abraço
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirBoa noite, Raymundo Netto! Anotei os endereçoes das redes que você me indicou. Sim, sou paraense, mas não resido no Ceará, resido em Marabá, Para´.
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