Nesta foto,
a Zenaide tinha apenas 18 anos. Oito anos depois se casaria e, no ano seguinte,
ingressaria em um panteão imaginário historicamente consagrado quase na mesma harmonia
ao de fadas, ninfas, deusas ou coisas assim, e que, como Deus, traduzimos
apenas em uma única sílaba: mãe! Assim como rezam as mitologias, a
renúncia e o sacrifício são as tônicas dessas aventureiras – não são todas a embarcar
nesta aventura, claro.
Minha
mãe, antes de ser mãe, era uma mulher. Como qualquer uma, tinha seus sonhos,
anseios, medos e incertezas. Uma vez que eu não conheci essa moça da fotografia,
não posso assegurar o que passava pela sua cabeça. No entanto, pude, sim, anos
depois, construir-me como ser à sombra desse mesmo sorriso.
Quando
criança, na escola, era comum nas festas das mães nós declamarmos poesia,
cantarmos músicas ou ensaiar esquetes no Dia das Mães. Não me lembro de ela
participar de alguma. Era dentista. Seus pacientes a esperavam. Ela não poderia
estar presente. Lembro-me de uma ocasião em que ela pediu para que papai ali estivesse,
pois a minha irmã mais velha, a Alice, iria apresentar a canção “Mãezinha
Querida” em sua homenagem.
Ela também
não ligava muito para datas, convenções, simbolismos. Dia das Mães, aniversários,
Natal, nada disso tinha para ela essa relevância que há muito se propaga, principalmente
pela necessidade de fomentar o comércio. Cresci assim também, acreditando na
importância de todos os dias, sem distingui-los, sem enaltecê-los, a não ser
quando necessários para provocar reflexão e não para lucrar e/ou procurar
razões para se embebedar ou comer de graça em festas. Mesmo assim, como uma tradição de família, não havia um aniversário em que não fossemos acordados na rede ou na cama com sua voz carinhosa, cantando: "Hoje é dia de seu aniversário... Parabéns, parabéns..."
Minha mãe
foi uma criança e adolescente diferente. Há quem diga ter “espírito velho”,
cheia de responsabilidades familiares – tinha 9 irmãos e sendo uma das mais
velhas, ajudava a mãe a tomar conta dos mais novos (e é até madrinha de alguns
deles) –, além de auxiliar na produção de iguarias para o “Bar O Mendonça”, de
seu pai, localizado em frente à Praça da Polícia, no Centro, e ministrar aulas
de reforço a crianças para ganhar um extra – muitas vezes o fazia de graça.
Li, uma
vez, em escritos poéticos de sua adolescência – tinha uma letra linda –, mensagens
ao seu Jesus, apresentando-se, na pureza da alma, de seu desejo de ser útil ao
próximo, de servir às pessoas. Talvez por isso tenha escolhido, primeiro, o
ofício de professora (1959), e depois a de dentista (1964). Mais tarde,
passaria o resto da vida em missão sacerdotal, acumulando uma família imensa a
atender, a acolher, a amar.
Tive o
privilégio, durante nossa convivência, de ouvir de sua boca, em horas perdidas
à mesa do café ou do almoço, algumas de suas histórias, ou mesmo de assisti-las
presencialmente durante anos, muitas vezes alternadas por cantorias de músicas
do passado.
Eu sempre
conversei muito com ela, o que mudou nos seus últimos anos. Às vezes, ligava
para mim “porque seu pai quer saber de você”. E quando comentavam para ela
sobre eu ser muito ausente, dizia “Ele é artista”. Para ela, eu “ser artista” justificava
o meu comportamento, minhas anormalidades (e fragilidades) e discursos extravagantes. Mas uma
coisa é certa: ela podia até não aceitar ou entender, mas se divertia muito, e
eu adorava vê-la gargalhar das minhas baboseiras diante da mesa de família repleta de filhos barulhentos.
Até hoje eu
guardo uma caixa de lata com centenas de tampas de adoçante. Comecei a
juntá-las há anos e não sei bem o porquê. Já me perguntaram e eu geralmente
digo que esta é a minha única chance de ingressar no Guinness Book, porque
acho muito difícil que alguém quebre um recorde como esse tão inútil. Entretanto,
o curioso aqui é relatar não ser eu o único autor desta façanha. Minha cúmplice
é minha mãe. Mesmo durante os seus últimos anos, quando nos distanciamos mais,
ela me ligava para eu pegar ou mandava por algum irmão um saquinho com
tampinhas de adoçante que ela não deixava jogar no lixo e as guardava: “São
para o Netto”.
Ela nunca
me perguntou o porquê de eu guardar essas tampinhas, provavelmente nem via qualquer
importância naquilo, mas abraçava a minha causa, assim como fez em toda a sua
vida, estando sempre ao meu lado, sem esperar nada em troca, sem me cobrar
atenção, se esforçando naquilo que ela dizia ser muito difícil: ser mãe!
Uma vez chegou,
preocupada, até a reunir os seis filhos, apenas porque alguém havia dito a ela
que nunca a vira beijando os filhos e, portanto, por isso, não seria uma boa
mãe. Realmente, mamãe não era de beijar. Terminada a reunião solene,
finalizamos: Ela era a melhor mãe do mundo!
Quando do
lançamento de meu primeiro livro, no tempo livre, ligava para toda a família,
imensa, convidando-a. Dizia, com a honestidade e inocência de sempre, “Eu não
li o livro, mas alguém leu e me disse que até chorou. Ora, se fez chorar é por que
deve ser bom, né?”
Hoje,
durante um café na Padaria Romana, eu vi uma velhinha sorridente, cercada de
familiares, filhos e netos, auxiliando na sua marcha difícil, comemorando o Dia
das Mães. Aquilo me fez pensar e me doer: “não cheguei a ver a minha mãe assim,
velhinha. Foi-se cedo demais. Cedo demais.”
Sentei-me
aqui e escrevi esse relato. Apenas um pouco do que era minha mãe, entre tantas
coisas que já escrevi e que irei escrever para tentar não esquecê-la (infelizmente é possível) e mantê-la
por perto, pois, como naquela canção – ela cantava tão bem: “Eu cresci, o
caminho perdi, volto a ti e me sinto criança. Se eu pudesse eu queria, outra
vez, mamãe, começar tudo, tudo de novo.”
E para ela, a música que tanto gostava de cantar neste dia:
https://www.youtube.com/watch?v=suUvAm56J4Y
Dona Zenaide é linda! Quanto amor
ResponderExcluirPara com o filho artista! …e as tampinhas …EMoCIONANTe
Edna Bessa
ResponderExcluirOlá, Edna. Muito obrigado pela sua leitura e retorno. Abraço.
ExcluirQue lindo texto! E o parabéns que ela cantava eu gosto muito. Já até cantei para alguns amigos. O danado é que a partir de : " E que em data igual a esta, haja sempre a mesma festa, " não estou lembrando mais. Parabéns!!!
ResponderExcluir"...Cada um renovando os votos que hoje traz de mil venturas e de paz..." É isso. Muito obrigado.
Excluiroi meu amigo. que belo relato. mesmo sorriso que você guarda. também percebo os dias, cada um deles, importantes, se não para mim, para alguém. raro comemorar algum em especial. como não ser sua mãe rara, sendo você o que é?
ResponderExcluirAmiga Lucirene, grato pelas palavras gentis. A recíproca é verdadeira. Abração.
ExcluirRaymundo Netto!
ResponderExcluirQue relato delicado e forte. Você traduz nessa narrativa, a imensa humanidade que lhe preenche o coração.
Parabéns e gratidão
A mesma humanidade que percebemos nessa nossa aluna mais dedicada do CPLI. rsrsr Abraço, amiga Malvinier.
ExcluirNa lata, Raymundo. Texto Graciianesco!
ResponderExcluirTúlio Monteiro.
Obrigado pela leitura, amigo Túlio. Abraço grande.
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