domingo, 21 de maio de 2023

"A Mentira do Amor", de Raymundo Netto


“E mais... vou dizer a você algo que eu nunca disse antes: Eu te amo, Maria Regina!”

Roberlândio era um homem que se orgulhava, de bater forte no peito, por não mentir nunca, em hipótese alguma. Nisto, era um obsessivo, um quase santo. Como ela conhecia bem essa sua ideia fixa, naquele instante da discussão, sentiu um alívio extraordinário, baixou a guarda, e ele se aproximou, em passos lentos, meneando a cabeça e com um sorrisinho patético que a ela causava, sabe lá Deus o porquê, um certo elã. Dali até mais tarde ninguém mais responderia por si naquela casa.

No dia seguinte, bem-amada, Maria Regina chegou ao trabalho como se pisando em nuvens. Estava no corredor do cafezinho com as colegas e não se conteve: “Vocês não vão acreditar... Roberlândio me disse que nunca amou outra mulher na vida.” As amigas se entreolharam, descrentes. Umas riram muito; outras apenas ponderaram: “Mulher, deixa de ser besta. É claro que amou.” Maria Regina, na paz de céu de brigadeiro, nem ligou: “Amou nada. Ele me disse que nunca havia dito ‘eu te amo’ para alguém antes de mim... E ele não mente!” As meninas saíram de fininho – alguém, talvez, até com certa inveja –, deixando Maria Regina a só, encostada num umbral de porta, suspendendo na ponta dos dedos uma xícara no ar a esfriar, ao contrário dos pensamentos românticos calientes que a tomavam: “eu, o seu primeiro amor...”

Naquela noite, ao chegar em casa, o marido encontrou a mesa bem posta, a mulher sorridente e carinhosa em sua nova lingerie e banhada a Avon Cristal “Toque de Amor”. À mesa, seu prato favorito: “Minha flor, não precisava...” Ela, delicadamente, estendeu o indicador nos lábios dele, sorriu, cerrou a luz do olhar e o beijou cirurgicamente.

Aquele lar, durante uns dias, era de uma felicidade intolerável, até a Remédios, cunhada de Maria Regina, aparecer para tentar vender a ela uns pontos de rifa. Conversa vai, conversa vem, Maria Regina soltou, numa excitação adolescente: “Menina, fiquei tão feliz... Seu irmão me disse que nunca amou outra mulher antes de mim.” Remédios franziu a testa, olhou para ela por cima do aro dos óculos, num pasmo igual ao que temos quando se cogita que a Terra é plana: “Roberlândio? O meu irmão? Ele lhe disse isso?” Encostou-se no sofá, segurando o antebraço de Maria Regina, e se pôs a gargalhar a ponto de engasgar. Maria Regina assombrou-se: “Ele me disse, juro!”

Recompondo-se, Remédios foi categórica: “Ele, desde rapazola, era um apaixonado compulsivo. Teve muitas namoradas. Quando acabava, era um sofrimento desgraçado. O coitado chorava, se escondia no quarto, não queria comer, só falava que o coração estava partido, doente, morto. Como é que não amava, criatura?” “Mas ele não mente...”, asseverou a envergonhada Maria Regina, que sentia ali como se as estrelas tombassem por sobre o seu desapontado coração. “Olha, cunhada”, disse Remédios, “se mentiu ou não mentiu, se amou ou não, sinceramente, mulher, isso não tem importância alguma.” Maria Regina, escancarou os olhos, escandalizada: “Para mim, tem sim... e muita!” Despediram-se ao portão e ela entrou em casa fervendo de ódio por sua ingenuidade. Deitou-se de bruços e pôs-se a chorar.

Quando Roberlândio chegou em casa, estranhou: nem mesa, nem mulher, nem cheiro de Avon. Como a casa estava escura, se guiou pelos soluços sofridos de Maria Regina. Sentou-se à beira da cama, mas quando a tocou, recebeu um safanão que o fez tombar no chão: “Que é isso, Maria Regina?” Ela levantou-se e começou a dar-lhe palmadas, chamando-o de muitas coisas, entre elas, de mentiroso. Roberlândio se revoltou: “Mentiroso, eu? Eu não minto, eu não minto.” Então, quanto mais ele dizia que não mentia, mais e mais forte ela batia: “Você me disse que nunca amou outra mulher antes de mim, e é mentira, seu mentiroso!” Desviando-se das mãos pesadas da mulher, Roberlândio explicou: “Meu amor, eu nunca menti para você. O que eu disse foi ‘Eu te amo, Maria Regina’. Ora, é claro que eu nunca disse isso antes... Eu disse ‘Eu te amo, Fulana’, ‘Eu te amo, Sicrana’... mas ‘Eu te amo, Maria Regina’, eu só disse isso para você..., Maria Regina...” E ali, numa solenidade besta e descabida antes do próximo e derradeiro bofetão, ainda ouviu-se: “Eu não minto jamais!”





 

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