domingo, 21 de maio de 2023

"Dor Profunda", de Raymundo Netto para O POVO


Ela chega frouxa e muda, se atrapalhando com as chaves da porta nervosa.

O marido acompanha àquele ramerrão com o olhar também silencioso: ela lança as chaves no console, a bolsa no sofá, os sapatos atrás da porta e avisa que vai se deitar um pouco, não estava se sentindo bem.

Todo dia o mesmo mal-estar, o mesmo mau-humor. Quisera poder dizer à mulher que deixasse aquele emprego indigesto. Mas como abrir mão daquele salário indispensável para cumprir os compromissos da casa?

Ele esquenta o jantar. Senta no canto da cama, acaricia seu rosto, chama a mulher a levantar-se no arrasto. Sentam-se à mesa. Como sempre, nenhuma palavra sobre o trabalho, colegas, chefes, rotina. Ele a provoca, quer saber o que a incomoda, mas ela é resoluta: "Não estrague meu jantar, pelo amor de Deus!".

Depois, apenas o consolo da novela e, ao deitar, mais uma noite fria de sofrer por enxaquecas à véspera.

Cansado de meses de desestímulo, apatia e desânimo, ele toma uma decisão: vai visitá-la no emprego. Precisa entender o porquê daquilo. Pensa em convidá-la para um almoço, uma caminhada em shopping ou apenas para sentar-se num banco de praça e tomar um sorvete, qualquer coisa que mude aquela rotina e lhe dê algum prazer. Entretanto, ao chegar ao endereço indicado, não encontra a referida firma. Estranha. Busca na internet e também não a encontra. Decide ligar para a esposa. Contudo, ela ao atender, reage: "Não venha aqui. Eles não gostam que empregados recebam visitas no trabalho, homem". Desliga na cara dele. Aborrecido, retorna para casa, com a pulga atrás da orelha, iria conversar com ela mais tarde. Porém, a mulher chega com a mesma indisposição e se nega a explicar qualquer coisa: "Depois de um dia desses, ninguém merece!".

Na manhã seguinte, ele se oferece para deixá-la no trabalho. Quer que ela seja feliz. Vê-la chegar arrasada todos os dias estava acabando com ele. Ela se recusa. Vai não. Deixasse de besteira: "Sozinha, eu não me atraso. Você é muito lento!".

Curiosamente, naquela noite, ela chega animada, receberia a tão esperada promoção. Finalmente, havia o reconhecimento. Cantarola, improvisa um novo jantar. Conversa sobre sonhos esquecidos e se deita com ele, com o amor de antes.

Mesmo assim, quando ela estava saindo para o trabalho, ele anuncia: "Quero ir com você. Não encontrei o endereço de sua firma. Preciso saber". Ela se indigna, pergunta o que ele está pensando. Acena com a cabeça e bate a porta em sua cara: "Machista, possessivo, ciumento!".

O marido, sem compreender tamanha ira e mistério, dirige-se novamente em busca do endereço que ela lhe confirmou e nada! Liga para o telefone da empresa: engano! Liga para ela: ninguém atende! Se desespera, enraivece, chora e ela nunca mais voltou para casa.




 

Um comentário:

  1. Raymundo, que fim inusitado deixa todos os leitores a inventar histórias. Muito bom!

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