domingo, 12 de fevereiro de 2023

"Amante" (Parte V), de Raymundo Netto para O POVO


Desde que Jandira anunciou a ela o inesperado namoro entre Ramon e Virgínia, Vitória se pôs a investigar o paradeiro daquela que fora a sua melhor amiga e companheira dos tempos de infância e adolescência no colégio.

Nas reuniões anuais entre as colegas daquela instituição de formação católica – elas, às vezes, nem tanto –, a ausência da divertida Virgínia era notada, contudo, havia logo um breve silêncio seguido por uma mudança drástica de assunto. A própria Vitória perguntara diversas vezes por “aquela danada”, mas ninguém a respondia... e agora ela imaginava o porquê. 

Conseguiu, com muita insistência, o seu número de telefone. Ligou. Para Virgínia foi uma surpresa atroz: Vitória a convidava para um encontro. Precisavam conversar. Após a primeira ligação, quase maquinal, veio a segunda, a terceira, já com sinais de irritação, depois a derradeira, até finalmente convencê-la.

Era uma tarde de domingo. Após a costumeira missa, Vitória a encontrou em um banco de uma significativa praça do passado, embaixo de uma árvore que um dia chamaram de “nossa”. Embora não tivesse certeza do rumo que aquela conversa tomaria, determinada, Vitória estava tranquila, ao contrário de Virgínia, absolutamente incomodada.

Vitória foi objetiva. Com a fala pausada, contou como soube da morte de Ramon, do seu encontro com Jandira, e de um suposto namoro entre Ramon e ela: “Você nunca me disse nada. Não me procurou. Nós éramos amigas. Por quê?”

Abalada e com uma expressão emotiva, Virgínia, a princípio, relutou a externar toda aquela memória doída e traumática, porém, talvez por ainda guardar em seu íntimo alguma centelha daquela amizade antiga, aos poucos deixou transbordar tudo aquilo que a machucava há tantos anos, coisas a que ela atribuía a sua atual infelicidade e a sequência de pesadelos de sua existência. Para ela, Vitória foi uma sombra que a perseguiu em tudo. Ela era a causa de tudo. Sim, ao conhecer Ramon, egoísta, abandonou a amizade e desprezou, sem explicação, a sua presença. Ela, Virgínia, assistiu ignorada àquele amor que ela não tinha e, nem teria, pelo mesmo homem: “Como a mim, você também o rejeitou. Éramos, nós dois, os usados e excluídos da sua vida à sua conveniência. Aproximei-me dele. Entendia o que sentia. Tentei confortá-lo. Ele quis namorar e eu me entreguei, pensando conseguir fazê-lo tão feliz quanto ele era com você. Não consegui.” Suspirou profundamente, conteve a dor daquele insuportável fracasso e continuou: “Ele, nem sei se tinha consciência disso, me chamava por seu nome, perguntava-me de você, queria saber histórias suas. Insistia em sabê-las, mesmo quando eu não as queria contar. Ah, que eu achava doentia essa fixação dele, mas, com pouco, percebi ser ainda mais doentio eu me render a isso, fazer esse papel de sua dublê. ‘Gêmeas’... era assim que nos chamavam, não era?”. Meneou a cabeça, baixando a testa por sobre o punho: “Por quê? Deus, eu queria que desse certo, pois eu o amei... Mas ele não. Ele sempre a amou. Só a você. Mesmo depois de tudo... Ah, que ódio eu sentia de você, Vi. Quis que morresse, nos deixasse em paz! Pensava: o que essa mulher tem nessa boca que o enfeitiçou assim? Você é uma bruxa. Lembra? Eu sempre disse que você era uma bruxa.”

“Me beija.”, disse Vitória subitamente. Pasma, Virgínia perguntou se ela estava maluca. “Anda, me beija. Você não quer saber como eu enfeitiço as pessoas? Me Beija. Ou não tem coragem?” Desafiada, Virgínia tomou seu rosto entre as mãos e a beijou. Um beijo de almas, repleto de mágoas, mas também de saudades. Dois corações frágeis, ali irmanados em incertezas e conflitos profundos. Depois, olhando firme nos olhos tristes da outra, Virgínia manifestou um primeiro e ainda tímido sorriso: “Não, não é lá essas coisas... Eca!” E esfregou a manga da blusa nos lábios, estendendo uma gargalhada represada na juventude, compartilhada com Vitória, naquele momento, com os olhos cheios d’água. Como meninas, abraçaram-se e falaram por horas, sem parar. Vinham-lhes lembranças, dores, angústias, mas também as alegrias e descobertas de uma vida inteira.

Anoitecia e ainda podia-se ver aquelas mulheres de mãos dadas no banco, envolvidas num halo de emoção, quando, em um instante, Vitória beijou o dorso da mão da amiga, suspirou e a revelou: “Ele... Ramon... me pediu em casamento.”

 (continua em 15 dias)


 

4 comentários:

  1. esse escritor...haja criatividade. admiro sua escrita.

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    1. Muuuito obrigado, Lucirene. Aguarde cenas dos próximos capítulos. rsrs

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  2. Você sempre nos prende com suas narrativas cheias de detalhes e situações cheias de surpresas.

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    1. Muito obrigado, Malvinier. Está acabando essa novelinha. Em breve, o final. Conto com a sua leitura.

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