segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

"Amante" (parte VI), de Raymundo Netto para O POVO


“Aconteceu durante a festa de formatura da escola”, descreveu Vitória à amiga. “Enquanto todos estávamos muito felizes, mesmo diante da tensão de um Vestibular, Ramon, naquela noite, eu sentia, estava demasiadamente eufórico. Mas ele era bem assim mesmo, pensei... Quando deram início à dança dos formandos, ele me abraçou e dançamos. Creio que ambos aguardávamos muito aquele momento. Senti o mundo desaparecer à nossa volta, assim como o chão de nossos pés. Ainda consigo lembrar-me da música [“A Whiter Shade of Pale”], da sensação de ter o seu coração pulsando acelerado tão ao lado do meu. Nossos dedos entrelaçados, o seu perfume de sempre e o olhar dele posto em mim. Acho que essa é uma das coisas que mais me impressionavam e que eu amava nele: o olhar. Eu tinha a impressão de que ninguém me via como ele. Para ele, eu era realmente importante. Ele me fazia acreditar nisso: eu era importante.” Silenciou como se a mergulhar naquela lembrança: “De repente, ele me tirou do salão. No jardim, abraçou-me e nos beijamos. Então, ele tirou do bolso do paletó uma caixa. Era, claro, uma aliança. Ali, tremendo e com aquele sorrisão no rosto, me pedia em casamento. Vê se pode? Ele querendo enfiá-la em meu dedo e eu dizendo que não era assim. Não havíamos conversado, não podíamos assumir aquilo. Éramos jovens demais... ‘Minha família não vai aceitar’, eu disse, e ele, como se decide ir à esquina, sugeriu: ‘Nós fugimos!’. ‘Você quer matar a minha mãe?’ Sim, eu sei, foi bem infantil, mas nós éramos assim mesmo: crianças. Disse que iria pensar... mas eu não queria pensar. Não, não. Estava apavorada! Depois, durante as provas do Vestibular e no início de curso na faculdade, consegui adiar esse papo. Vez por outra ele insistia, cobrava-me uma decisão e, diante de sua falta, alegava eu não ter certeza de amá-lo. No entanto, certeza mesmo eu tinha de querer me formar, concentrar-me na profissão escolhida, ganhar o meu dinheiro, viajar, conhecer pessoas, tantas coisas... Já Ramon queria casar logo e ter filhos. Moraríamos com a irmã dele no início, arranjaria um trabalho qualquer enquanto concluía o seu curso... Eu não queria nada disso. Foi quando conheci o Carlos. Como eu, estagiava na área, já reunia economias, queria abraçar a futura profissão, curtia a vida e namorava sem gerar expectativas. Acho que isso me atraiu. Não aguentava mais aquela pressão do Ramon. Tinha que acabar com aquilo, mesmo que me doesse e o machucasse. Pensava: ‘Se tiver que ser, um dia nos encontraremos novamente’, o que sabemos, nunca aconteceu”.

Virgínia ouvira toda a história. Levantou-se e, em despedida, abraçou a outra: “Vi, eu não conheci esse Ramon. O homem que esteve comigo era infeliz, desesperançado, a ponto de sua tristeza não caber nele. Pior: tinha de sobra para distribuir a quem tivesse coragem de estar ao seu lado... como eu. Ele era incapaz de enxergar qualquer futuro. Vivia apenas para remoer o passado, pois era lá, somente lá, onde ele poderia encontrar você.”

Assim, impossível seria dormir naquela noite. No dia seguinte, como em outros antes, bateria à porta da casa de Ramon para mais uma excursão silenciosa ao seu encontro.

Jandira demorou mais do que o de costume para atendê-la. Sua fisionomia também não era das melhores. Acostumada, Vitória entrou e, quando abriu a porta, estarreceu: o quarto estava completamente vazio! Voltou-se para a sala e ouviu de Jandira: “Eu tinha que acabar com isso. É muito louco, é imoral. Você tem que deixá-lo descansar. Ele está morto, criatura... morto! É tarde demais para ele... mas para você... Esqueça. Pelo amor de Deus, esqueça.”

 

(A última parte em 15 dias)

 






 

2 comentários:

  1. olha, que coisa né?
    me vi nessa história, encruzilhada, entre um amor de criança e a vida inteira por descobrir..aplausos!

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  2. Essa história, com certeza, não é apenas deles, Ramon e Vitória, Lucirene. Certamente, aqui e ali, vamos (me incluo) nos identificar com alguns desses acontecimentos ou sentimentos expressos na narrativa. É vida, e a vida é assim.

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