Noite de lançamento de livro. O secretário da Cultura fez-se
presente, assim como o responsável pelo equipamento cultural e o coordenador de
Literatura, além de diversos escritores, amigos e familiares do autor estreante,
colega de faculdade do secretário, de todo nervoso e satisfeito pela honraria aos
olhos das autoridades e personalidades ilustres do meio dito intelectual da província.
O
secretário abriu a solenidade esquivando-se do protocolo. Discorreu numa voz
frouxa, escorregado em sorrisos tímidos, sem abusar dos velhos jargões da veia
e dos excessos vocabulares e loas tão apreciados pelos panegiricais aspirantes
a estátuas, revelando a intimidade para com a “estrela” da noite, um grande e
enfatiotado desconhecido de todos, que naquele momento se ia por ali ralhando
em cochichos com a companheira que o convencera ao uso daquele terno, enquanto
nem o próprio secretário, visse ali, o fazia. Ela, no entanto — a mulher sempre
tem mais razão e se não tiver é melhor que tenha —, desdenhava batendo-lhe as
caspas dos ombros: “Errado está é ele! Como pode, um secretário... Não tem mulher
em casa, não, é?
As palmas
fluíram no primeiro engasgo do homem, garantindo o ponto final. O secretário, que
nem era candidato a nada, misturou-se à plateia, conhecesse um a um de seu ninguém,
estampando a carranca denteada às máquinas fotográficas de adolescentes e aos incômodos
celulares a deixar todo mundo com a mesma cara de borrão.
O seu
auxiliar, na esperança de receber ainda das sobras da ovação de seu antecessor,
pôs-se a repetir, noutras palavras, tudo dito antes sobre o amigo do
secretário, embora de forma mais vibrante, como sói um bajulador-mestre sabe
cumprir: era o autor pessoa querida, da melhor cepa, intelectual de primeira
linha, quiçá um novo Machado de Assis da Sociologia. Ao final, recebeu palmas
modestas, mas, o mais importante, o abraço acolhedor e compreensivo do seu secretário.
O
coordenador de Literatura foi mais cerimonioso, ao disputar a atenção do chefe que
precisou de ajuda para largar-se do grudento assessor quase a rasgar-lhe o
peito. Em posição solene, discorreu sobre a importância do livro — não daquele,
porque dali ninguém o lera — e do momento para a história cultural do estado. Com
um sorriso ao canto da boca remendou uma fala de meritória dúvida sobre termos
a primeira academia de letras do Brasil, encerrando assim completamente seu
repertório historiográfico, ao repetir isso ainda umas três vezes até concluir
com uma frase numa língua que ninguém reconheceu, menos entendeu, mas aplaudiu.
O autor “então-era-aquele”
foi convocado. Leu umas quatro laudas de seu improviso repleto de lembranças do
pai e da mãe, da professorinha da alfabetização, de louvor a Nossa Senhora e de
agradecimentos à mulher, companheira de tudo, maior crítica e incentivadora,
ali, ao lado, a esfregar o olhar úmido e a contrair os lábios em promessa de
beijo. Muita emoção!
Em ato
democrático, facultada foi a palavra, e, para desespero do público, na ânsia do
requentado coquetel, um dos participantes, outro desconhecido de todos, tomou o
microfone. Iria, sim, falar. O rapaz, jovem de nem trinta, apertava o nó da
gravata — usava jeans e botas (?) — e cumprimentou a todos em voz grave. O
motivo de estar ali era simplesmente aproveitar a ocasião para dar a boa nova:
era também (mais um) autor cearense. Escrevia desde a meninice e, agora,
finalmente, teria recebido o justo reconhecimento. Uma obra sua chegara aos
Estados Unidos. Um diretor famoso, o Coppola, comemorava. Escrevera já o
roteiro daquela joia tropical a ser filmada no melhor estilo Hollywoodiano,
aspiração de Oscar. De mais, já era certo, enfatizou, o contrato com o Brad
Pitt para o papel principal.
As palmas
admiradas tomaram conta da noite enciumando o secretário a também aplaudi-lo
desmotivadamente. Correram-lhe para cima, inclusive o opaco amigo do secretário
a oferecer-lhe, gratuitamente, exemplar com dedicatória especial do novo livro:
“Entregue ao sr. Copolla. Sou fã dele!”
Dias e
burburinhos depois, confirmada a suspeita: aquele rapaz era mesmo um maluco, um
doidivanas, um bronco delirante. Sequer sabia escrever o próprio nome. Foi
preso ao caminhar pelado, alienado de tudo e clamando por um tal “Brad”, no
calçadão da beira-mar.
Aloucado,
pode ser, mas que teve os tais privilegiados “quinze minutos de fama” em que conseguira
ele ser ouvido e aplaudido pelos dublês de autoridades e intelectuais da nossa
desprezada e legítima cultura cearense.
Acredite
se quiser...
poxa! desfilou lançamentos, eventos, celebridades, passageiras ou não. aplausos merecidos e sinceros. um abraço
ResponderExcluirFoi um final de tarde inesquecível de tão absurdo.
ExcluirAmeiiiii
ResponderExcluirMuuuuuito obrigadooooo
ExcluirPior q acreditei. Se falasse que o secretário era Eduardo Campos, acreditaria.
ResponderExcluirPois acredite. É tudo verdade. A linguagem do autor dá entender de ser até ficção, mas eu juro que tudo isso aconteceu desse jeitinho.
ExcluirGostei muito, querido Raymundo Neto! Dei boas risadas. Valeu!
ResponderExcluirÀ disposição! Abs
ExcluirAprendi mais uma: Panegiricais..... Obrigado!
ResponderExcluirHahahaha É o novoooo
ExcluirMuito bom!!! Fragmentos de puro prazer: "esquivando-se do protocolo"; " excessos vocalulares e loas tão apreciados pelos aspirantes a estatuas"; " só um bajulador-mestre pode cumprir"; "numa língua que ninguém reconheceu, menos entendeu, mas aplaudiu"; "umas 4 laudas do seu improviso"; "ânsia do requentado coquetel"... hahahahaha. Cenário carregado de detalhes que só os frequentadores de lançamentos da província conhecem bem!!! Não é, Raimundo Netto?
ResponderExcluirSuper é... rsrs Eu não sei foi como esse texto se perdeu (foi escrito, creio, por volta de 2008 a 2009). Mas o encontrei, li e imaginei ser tão atual... hahaha Nossa província é boa para originar essas bizarrices.
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