segunda-feira, 18 de julho de 2022

"Pelada, Não!", de Raymundo Netto para O POVO


Não aceitava a mulher andar pelada em casa: “Mas de jeito nenhum! Uma indecência!”

Peixoto, diante da súbita e vezeira visão em pelo de Simone, não perdoava e desfolhava um sermão quase litúrgico, enquanto a pobrezinha se punha em trajes, absolutamente envergonhada com a nudez de seu próprio corpo, tão ingênua quanto a “Origem do Mundo” de Courbet: “A mulher tem que guardar o mistério. Sem mistério perde a graça. Mistério é tudo!”

Não tendo outro jeito, ela era obrigada a ouvi-lo, mas não entendia aquele recato exacerbado do marido.

No escritório ou no bar preferido, sem quê nem para quê, Peixoto batia no peito a certeza de defensor de bons costumes. Os colegas também estranhavam a conhecida ladainha de Peixoto: “Lá em casa, mulher minha não se dá a essas imoralidades... Sissi é uma santa! Jamais de andar com essas roupixas mostrando as protuberâncias para o mundo que nem essas mulherzinhas modernas, não. É decente. Por ela, boto a mão no fogo.”

Encabulada, a audiência tentava mudar de assunto, afinal, todos conheciam Simone, uma mulher jovem, linda de morrer, possuidora de um corpo magistral. Aliás, o que ninguém sabia era como uma garota daquelas caíra nas mãos daquele turrão. 

Simone tinha o olhar de uma doçura comovente, angelical, combinando com os cabelos negros e lisos a escorrer até a cintura delicada. Um encanto. Assim, naquele dia, enquanto o homem discorria sobre a nudez proibida da mulher, mal sabia ele que a plateia, completamente muda, abusava da imaginação:

“Tem que haver mistério. O mistério é o segredo do casamento!”, bradava.

Certa feita, não suportando mais o “discurso do mistério”, Simone comprou e passou a vestir uma burca, deixando à mostra apenas os olhos.

Peixoto estranhou, achou até gozado, um exagero, é claro, mas se fosse para afrontá-lo, deixasse estar.

Passou-se um mês, dois, três, e a esposa permanecia reticente. Não tirava aquela burca para nada. O marido começou a ficar cismado. Dizia que não precisava disso, porém ela fingia não ouvir e continuava com a burca em casa e até na rua.

A vizinhança toda sabia da história e havia quem se pendurasse no peitoril da janela de sua casa para ver se era verdade aquilo. Ali, na sala, a mulher parecia um fantasma a assombrar o juízo do obcecado moralista.

Peixoto, às noites, aproximava-se com uma conversa mole qualquer e até suplicava: “Sissi, meu anjo, deixa eu ver a sua boca, vai... Só a boquinha, por favor, eu juro...” Simone olhava para ele, profundamente magoada: “Mistério não é tudo?”

No dia seguinte, a coisa complicou: ela decidiu trancar-se definitivamente no quarto. O marido agora não a via mais de jeito nenhum. Também não ia mais ao seu comércio. Julgava ter a mulher enlouquecido. Sentava-se o dia inteiro ao pé da porta, chorando feito menino, implorando para que mudasse de ideia, que colocasse um dedinho por baixo da porta, qualquer coisa, estava sofrendo o diacho sem ela. Foi quando a mulher falou, após alguns dias: “Se você quiser mesmo me ver, entre, mas eu não vou abrir.”

Peixoto, assim esperançado, surtou. Passou a esmurrar a porta, chutá-la, jogava-se violento contra ela, deu marretadas na fechadura e nada de a porta abrir. Mas, após horas e horas de insistentes e malogradas tentativas, enlouquecido de paixão e desejo acumulados, conseguiu, finalmente, entrar. Como? Atravessou o buraco da fechadura!

Mistério...




 

16 comentários:

  1. fico feliz por você, grande verdade, feliz por todos que conseguem serem bons naquilo que fazem. parabéns! muito bom ler você.

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    1. Agradeço muito e gostaria de saber quem é você. Infelizmente aqui me aparece como "anônimo".

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  2. Que texto hein! Uma leitura prazerosa e leve... nos fazendo usar a imaginação. Parabéns nobre escritor, você me deixou ainda mais encantada com seu trabalho.

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    1. Agradeço muito e gostaria de saber quem é você. Infelizmente aqui me aparece como "anônimo".

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  3. ❤Neto tu não existe😄muito bom começar o dia com Voce😃o que seria de nós se não fosse nosso Bom Humor 😃dei boas risadas gargalhadas 😃um feliz dia cheio de alegrias e de surpresas maravilhosas grande abraço❤

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    1. Embora apareça como "Anônimo", é a Lúcia, não é? rsrs Abração

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  4. Que coisa maluca! Todinho igual a você. Fiquei imaginando o homem morrendo e a alma dele entrando espremendo_se toda, para entrar pela fechadura..kkkk, também sou louca.( Rs)

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    1. Agradeço muito e gostaria de saber quem é você. Infelizmente aqui me aparece como "anônimo".

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  5. Tudo é mistério..... até quando se lê o ótimo texto.. Inês Ramalho

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  6. Excelente texto, Raymundo como sempre. Nesse, especialmente, o mistério saiu do conto e se estendeu até os comentarios: quem será essa "anônima"?

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    1. Por aqui é cheio de anônimos. A pessoa para publicar tem que escolher como quer aparecer. Se não escolher, fica anônimo. Acho ruim, pois gostaria de saber com quem estou teclando.

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    2. Mais um enredo criado por Raymundo Netto que supera toda a nossa imaginação. Excelente!

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  7. Maravilhoso texto. Amei... Parabéns por mais esse criativo conto.

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