terça-feira, 2 de agosto de 2022

"Enlutada", de Raymundo Netto para O POVO


Safira seguia a passo vago ao lado do caixão do marido. Olhava Edmundo de cima a baixo, de baixo para cima, como se a qualquer momento fosse de sua providência acertar o véu, recompor um detalhe, apertar os cadarços, ajeitar-lhe as mãos pesadas no peito mudo. Como se ele, dali a pouco, pudesse lhe pedir qualquer coisa, qualquer uma. Ela o faria, certamente, o faria como sempre.

No mesmo passo, desviava a atenção dos olhos úmidos para as paredes nuas, às imagens de um Cristo triste e rendido a esvair-se em sangue, enquanto a mocinha da funerária, que interrompia o silêncio com irritantes saltos ligeiros, trazia os copos descartáveis e o café para as visitas:

"Não tem ninguém, senhora?"

"Ninguém, por quê?"

O casal se bastava em si, nem filhos, orgulhavam-se, lembrou. Foram morar longe: "Família só serve para dar pitaco!" O amor lhes era tudo. Era o teto, o chão e o cobertor do casal. O que poderia faltar diante do amor de duas almas tão sinceras?

Durante algumas horas, apenas uns poucos, menos de dez, colegas do trabalho, passariam por ali. Alguns deles, cerrados em óculos escuríssimos, mal emitiriam palavras, apenas grunhiam. Poderia ser qualquer coisa, de "lamento" a "demorou”. Perguntariam: "Como foi que aconteceu? Tão jovem...":

"Não sei. Ele estava tão bem, feliz, e de repente... Foi-se." Não demorariam. Teriam outros compromissos, qualquer um, senão ficariam, mas ligasse — se tivesse deles sequer algum número. Entretanto, trariam a mais bela e única coroa de flores. Nela, uma cor clichê: "Saudades".

Ficaria por horas novamente só, imutável, sentada numa incômoda poltrona de viúva a rememorar o sorriso elevado que ora jazia ali, sepultado em algum lugar daquele cadáver, objeto repulsivo a caminho dos vermes que conduzem à desintegração terrena.

Por vezes, tomava coragem, levantava-se e parava diante do corpo do marido. Espalmava a mão na testa lânguida e uma ânsia lhe tomava o corpo em arrepios lancinantes. Como seria possível amá-lo assim? Como poderia guardar na lembrança aquele homem? "Morto!" Punha-se em soluços de agonia. O peito arfava em espasmos sucessivos e ela tremia, esfregando as mãos na saia: "Que nojo! Nojo! Nojo!"

Mais tarde da noite apareceu da penumbra outra mulher. Chegou ao portal do salão e estacou. Vestia o negro na corrente de profundo abatimento. Olharam-se. Não se conheciam decerto, mas era como se se soubessem. Aproximou-se, margeou o esquife, como chegasse aos pés de um precipício, e deitou a mão levemente na perna esquerda do falecido. Com breve, seu olhar transmudou de grave a enlouquecido, desesperado. Deitava lágrimas convulsas, num choro pesaroso e inconsolável de encontrar eco nas demais cabinas mortuárias. Mais um pouco, até seria possível invejar Edmundo na sua condição de morto.

Safira assistia passiva, comovida e atônita. Por um momento, não se sentia mais só. Na verdade, não sentia nem o próprio corpo, nem a mesma dor.

Aproximou-se da outra, tocou-lhe os dedos e pronunciou-lhe um beijo na testa. Voltou à poltrona, tomou a bolsa e, num suspiro profundo e sem olhar para trás, se foi, enquanto a enlutada subia, ainda trêmula, no caixão de Edmundo, aninhando a face saudosa sobre o seu peito e, como uma jura imortal, morreu com ele.

 




 

6 comentários:

  1. Raymundo, todas as vezes que venho aqui, eu não só leio teus textos. Eu VEJO as cenas descritas. Abraço fraterno.

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  2. Camarada, mesmo num causo de clima fúnebre você me faz rir. Essa de invejar a condição do morto por causa das lágrimas sinceras lamúrias da "outra" me tirou risos nessa madrugada

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    1. Às vezes eu me contenho para evitar esses arroubos e transformar em comédia o que é uma tragédia... Perder a piada é difícil... Valeu pelos risos madrugais, meu amigo.

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  3. Impressionante! Não pude conter a gargalhada. Mata a outra assim não, menino.

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