I
Estava hospedado em um
pequeno hotel à beira-mar de uma cidade africana.
Sozinho,
sem conhecer ninguém nem o lugar, havia acabado de tomar o meu café da manhã,
quando decidi fazer uma breve caminhada de reconhecimento nos arredores. Ainda no hall envidraçado do hotel, algo incomum
me chamou atenção. Havia, não muito distante dali, envolta a uma densa névoa,
uma espécie de torre escura em alvenaria erigida em um alto rochoso conhecido –
me disseram – como Ponta Tenebrosa, por ser remotamente um “cemitério de
navios”.
Curioso,
segui por uma vereda de areia e cascalhos, e chegando mais próximo da
construção, confirmei tratar-se mesmo de um antigo farol a precipitar-se na
ponta da tal rocha, como se a qualquer momento pudesse lançar-se contra aquelas
ondas extremamente verdes e brilhantes com o mesmo vigor com que elas banhavam o
seu torreão octogonal.
Em torno
dele, havia uma estrutura de um fortim. Como o largo portão azul da fachada estava
aberto, entrei. Nas laterais da entrada havia depósitos ou armazéns, que
deveriam guardar provisões, gerador ou materiais de manutenção dos seus
mecanismos. O seu terrapleno de pedras era cercado por uma mureta pequena e, em
um de seus lados, havia dois envelhecidos canhões de bronze.
Mesmo sendo
um dia ensolarado, ao olhar para cima, ainda via aquela grossa névoa a tomar
toda a parte superior da torre.
Chegando
próximo à mureta, senti a força dos ventos naquele local rodeado por imensas
rochas negras, salpicada de mexilhões, de cujas frestas saltavam alvas espumas
do mar e um som cortante, como de intermináveis gemidos.
Na base da
torre, uma pequena porta encimada por uma saudação à rainha de um tempo
distante se abria, e dela saía um homem idoso, negro, magro, que se dirigiu a
mim com um extenso sorriso de boas-vindas, apresentando-se: Zacarias. Era ele o
faroleiro. Não apenas o faroleiro, disse-me, mas provavelmente o último
faroleiro de toda a África.
Perguntou-me
se queria entrar, conhecer de perto aquele farol. Não me preocupasse, não seria
incômodo nenhum, asseverou, movimentando as mãos ligeiras e trêmulas.
Entrei. Logo
ali, uma saleta escura e bastante úmida, impregnada da maresia, o seu local de
trabalho. Havia uma cadeira, alguns bancos, uma fileira de latões, um rádio e
uma escrivaninha de madeira com grandes gavetas. Por cima da escrivaninha, desenhos,
pincéis, pinças, tesoura, martelinho, borracha, flanelas, algodão, dezenas de
relógios, de todos os tipos e modelos, assim como nas paredes, relógios de
capela e carrilhões.
Percebendo
meu estranhamento, Zacarias sorriu: “Sou relojoeiro. Um hobby apenas. As
pessoas acreditam que não se tem muito o que fazer em um farol. Parece não ter
mesmo. Muitas vezes, somos úteis, o farol e o seu faroleiro, em uma única vez
na vida. Mas esta única vez pode salvar muitas vidas. Nos consolamos com isso e
ficamos atentos para a chegada deste momento... o nosso!”
Aproveitando
o ensejo e imaginando encontrar ali um bom motivo para voltar, perguntei se ele
não poderia dar uma olhada em meu relógio. Eu pagaria, é claro. Tirei o relógio
e o entreguei. Ele aceitou, desconfiado, me pareceu. Colocou-o à mesa: “É muito
novo. Uma limpeza talvez... Trabalho com relógios de família, mais antigos,
como pode ver.”
Nesse
momento, percebi que me flagrou olhando, ao fundo soturno da saleta, a antiga escada
em espiral que nascia ali e que deveria findar no alto da torre: “Você quer
subir lá? Tem certeza disso?” E riu, com certo deboche, pensei, tentando me
fazer hesitar, mas respondi: “Sim, eu quero muito!”
II
“Pois bem-vindo ao meu
purgatório.”
Apesar do
tom jocoso, não sei por que, diante daquelas palavras, senti um estranho
arrepio percorrer o meu corpo. Nunca havia estado em um farol antes, coisa que
só via em livros ou filmes antigos. Com ele, um imaginário de lendas e
narrativas repletas de criaturas fantásticas e sobrenaturais, monstros
marinhos, polvos gigantes, nereidas, sereias, tritões, piratas, deuses e
demônios. O ar impregnado de miasmas, as artérias verdes que sulcavam as paredes
a afunilar à medida que, em direção ao topo, galgávamos mais degraus da íngreme
e estreita escada em espiral, me faziam entontecer, sufocar e quase alucinar.
Zacarias ia
à frente, ágil como quem percorrera aquele trilhar por uma vida inteira. Percebia
que falava o tempo todo, creio, movido pela costumeira solidão, mas eu não
conseguia compreender nada do que dizia. Além do som da agitação e do choque
brusco do mar que ecoava ali, e do meu inesperado mal-estar, me dispersava com
o implicante rangido dos degraus aos meus pés – que me pareciam mais pesados do
que o normal –, o fluente suor a gelar o meu rosto, a visão de aranhas a
mordiscar moscas, como que mumificadas, em extensas teias a tomar as paredes
úmidas e escuras da construção, além do uivar do vento a zumbir nos meus
ouvidos.
Parei em
uma pequena janela, a primeira que encontrei, próxima ao contrapeso que pendia
no centro da torre, e lancei meu rosto para fora em busca de ar puro.
Àquela
altura, o horizonte baço, como berço, acolhia o firmamento. Alguns albatrozes
ou fragatas ligeiras, não tenho certeza, transpunham o céu azul-acinzentado.
Logo abaixo e distante, um barco pequeno oscilava, com dois homens,
provavelmente pescadores. Eles acenavam, colocando a palma da mão sobre a testa
para avistar o farol. Deveriam passar por ali muitas vezes, acredito, mas mesmo
assim achavam dever alguma reverência àquele impávido gigante.
Zacarias já
havia chegado à plataforma e apressava-me. Estava no alto da escada. Exceto a
brancura de seus olhos e dentes a se destacar na escuridão, mal conseguia enxergá-lo.
E assim, subi os últimos degraus para a claridade.
Era impressionante
a vista que tínhamos da plataforma. Tanto do mar, quanto da cidade. Talvez por
esse motivo, o convívio diário e zeloso com aquela silenciosa e solitária
vastidão, muitos faroleiros se tornavam pessoas excêntricas, ensimesmadas.
Apoiei-me no guarda-corpo que circulava a plataforma. Devido à maresia, estava bastante
carcomido. Zacarias alertou-me: “Não confie...”
Enquanto
ele fazia sua rotineira faxina e a manutenção das lentes do farol, eu
contemplava o panorama, esforçando-me para ficar em pé, resistindo à força dos
ventos dali.
O faroleiro
aproximou-se, trazendo nas mãos uma flanela velha: “Você consegue ouvir a voz?”
Não entendi, e ele me disse: “A voz do mar. Com o tempo, a gente aprende a
ouvi-la. Ela ensina, nos conta histórias e nos alerta. O oceano é a maior
testemunha da eternidade.”
Enquanto
limpava um a um dos dedos de suas mãos, perdia o olhar no espaço distante,
quando, do nada, sentenciou: “O mundo, meu amigo, vai acabar aqui.”
Seu olhar
se transfigurou, de doce a sombrio. Tive a impressão de um aviso, um mau
presságio, sei lá. Uma angústia profunda me tomou por inteiro. Gaguejando,
disse-lhe que tinha que ir-me logo, havia esquecido um compromisso. Ele riu: “É
mesmo como o oceano... quem vê o vaivém suave de suas ondas na superfície, não imagina
a vida que se passa nas suas profundezas.” Nem esperei a sua conclusão e,
aflito, desci ligeiro, correndo perigosamente pela escada, tomado por uma
insólita sensação de perigo e possessão, sem olhar para trás e alheio ao som da
voz cada vez mais distante do velho Zacarias.
III
Naquela noite de
perturbado sono, despertei subitamente ao som de carrilhões e sinos ecoando na
cabeça. Com eles, a imagem distorcida de dezenas de relógios amontoados nas
paredes salsuginosas do farol. Cambaleando e quase involuntariamente corri à
janela. Chovia muito. Tentei avistar o farol e não consegui: “Estaria
desligado?”
Desci as
escadas desertas do hotel e, movido por uma estranha e incômoda curiosidade, ou
talvez por uma outra força sobre-humana que não saberia explicar, enfrentei a
tempestade fria e relampejosa, envolta a sons guturais de ventos e trovoadas,
seguindo por um caminho da lama a descer em corrente do alto da Ponta
Tenebrosa.
No meio da
trilha escura, uma surpresa: pude ver, por meio da fosforescência das águas
revoltas do mar, um navio se dirigir à costa. O farol estava mesmo apagado,
como se imerso na sua própria melancolia, e previ ali uma tragédia.
Corri o
mais rápido que pude na esperança de alertar o faroleiro. Porém, lá chegando,
bati à porta diversas vezes. Chamei por Zacarias, desesperadamente, e ele não
me atendia. Não, ele não poderia estar ali. O que teria acontecido? Chutei a
velha porta. O cadeado se manteve firme, mas ela se arrebentou e eu entrei.
Diferente
da última vez em que lá estive, subi mais do que depressa os degraus da escada
da torre e alcancei a plataforma. A torre inteira parecia tremer diante do
lamber agressivo das ondas. O navio, dali, parecia ainda maior, assim como o
perigo que o conduzia. Mesmo com a visão dificultada, percebi ser um navio
antigo, tais quais os contratorpedeiros japoneses da Primeira Guerra Mundial.
No convés não havia ninguém, assim como não havia sinal de iluminação ou de
vida em parte alguma na superfície da embarcação, que mantinha o curso em rumo
de colisão com os recifes e as rochas.
Mesmo sem
nunca ter operado um farol, na tentativa de atrasar o tempo, desci novamente e
ousei acionar os botões, interruptores e pequenas alavancas do painel até
conseguir emitir os aguardados lampejos brancos e vermelhos do aparelho, além
dos sinais sonoros. Milagrosamente, consegui!
Voltei à
plataforma e de lá busquei atento por qualquer movimento do navio que me
confirmasse terem percebido o sinal luminoso. De repente, o mar, diante dele,
começou a se abrir. A embarcação pôs-se a descer, como se em rampa, em direção
ao fundo, sendo aos poucos tomada e coberta pelas ondas até desaparecer por
inteiro. Foi quando a chuva e os ventos cessaram. As nuvens dissiparam no céu e
uma enorme lua surgia totalmente indiferente a tudo aquilo que eu assistira.
Seria apenas um delírio? Uma ilusão? Aquilo realmente acontecera?
Decidi
voltar ao hotel. Contudo, passando pela saleta de Zacarias, dei pela parede e
seu amontoado funesto de relógios que me assombraram à noite e me trouxeram
ali. Para o meu espanto, entre eles, em um prego velho, pendia o meu relógio,
estranhamente parado no horário em que lá estive pela primeira vez. Fixado a
ele, um bilhete com letras garranchudas: “O mundo acaba aqui.”
Senti
minhas pernas falharem e ajoelhei-me. Uma voz, como a que ouvimos em conchas,
tomou-me os ouvidos. Tive a certeza de que eu não poderia mais sair dali. O
farol, conforme a voz, havia me escolhido. Não era Zacarias, mas seria eu, o
último faroleiro da África.
menino, Raymundo, tomado por uma história fabulosa!
ResponderExcluirMuito bom, Raymundo Alan Conrad Lopes!!!
ResponderExcluirObrigado pela leitura, Carlos. Abraço.
ExcluirNarrativa maravilhosa que faz a história se tornar tão real que agora estou curioso para saber como escapou do Farol e retornou para Fortaleza! Rsrs
ResponderExcluirHahaha Nem imagino como voltei... Abraço, amigo Luciano.
ExcluirBelo conto, garoto!
ResponderExcluirMerece uma segunda leitura.
Obra-prima do conto. Original e muito bem escrito. Dimas Macedo
ResponderExcluirObrigado, Poeta, pela leitura e seu retorno. Grande abraço.
ExcluirQuerido RayNetto, quão prazerosa é a leitura!
ResponderExcluirA primeira linha já nos deixa esperando o desfecho, sabendo que o desenrolar será fascinante. Um abraço!
Querida, Fatimaia, feliz pelo seu retorno e leitura. Abraço grande.
ExcluirNossa, que maravilha de notícia! Pura emoção!!! CB
ResponderExcluirComentário do amigo e professor Pardal: "Interessante, a história, com algumas características da crônica, mas com a construção do personagem do conto; e do conto de suspense, cujos mistérios estão dentro da narrativa fantástica - Raymundo Neto já trabalha nessa linha, há um bom tempo. É um conto que vale pelo suspense, pela sugestão, pela amarração do leitor e pelo surpreendente final. Valeu companheiro. Pardal."
ResponderExcluirAssim como disse o professor Pardal o texto tem característica da crônica, mas com a construção do personagem do conto,eu não sei entender todos estes belos argumentos, digo me encantei com o texto, e fiz uma promessa : irei conhecer um farol ....
ResponderExcluirHahaha E é isso que importa. Obrigado
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