Eu era bem jovem quando perdi meu pai,
cursava a segunda série do segundo grau e fazia um ano e meio que morava longe
da família, pois em minha cidade só havia o primeiro grau: foi um choque
terrível, cheguei até a pensar em largar tudo e voltar para a pequena cidade
natal, porém resisti à dor e às dificuldades (não sem a ajuda de muitos), então
criei uma defesa na forma do “pensamento mágico” de que um dia encontraria meu
pai por acaso em algum recanto do mundo... E essa ingênua e útil ideia foi
sobrevivendo ao tempo, de forma que estou às vésperas de completar a idade dele
quando se foi e permaneço de vez em quando vislumbrando seu perfil na multidão
de qualquer cidade onde esteja.
Muitos anos depois, lendo o belo livro Aqui
nos encontramos, do inglês John Berger, percebi que não era o único a imaginar
essas fugas úteis, no romance o autor inicia descrevendo: “No centro de uma
praça, em Lisboa, existe uma árvore chamada cipreste lusitano. (...) Seus
galhos, em vez de apontar para o alto, para o céu, foram treinados a crescer
para fora, horizontalmente, de modo que formam um gigantesco, impenetrável e
baixíssimo guarda-chuva com um diâmetro de vinte metros.” Embaixo dessa
estranha árvore havia um também estranho poema: “Eu sou um cabo da tua enxada,
o portão da tua casa, a madeira do teu berço, a madeira do teu caixão...”. E
continua a descrever a praça e seus p(r)assantes, até se deparar com uma
velhinha, que – do nada – pega em seu braço: “Abruptamente, (...) ela se
levantou, virou-se e, usando o guarda-chuva como bengala, veio em minha
direção. Reconheci seu andar. Muito antes de poder ver-lhe o rosto. Era o andar
de alguém já aguardando, com impaciência, chegar e sentar-se. Era minha mãe.”
Depois de algumas divagações do narrador, ela lhe fala: “Há alguma coisa, John,
de que você não deveria se esquecer – você se esquece de coisas demais. Aquilo
que você deveria saber é o seguinte: os mortos não ficam onde estão
enterrados”.
No seu conto “O outro”, da coletânea O Livro
de Areia (1975), o argentino Jorge Luís Borges encontra, também numa praça, a
si mesmo, seu duplo, que assovia calmamente e puxa conversa com o
narrador/personagem estupefato: “– Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a
alguns passos do Ródano. O estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito
mais velho, com a cabeça grisalha.”, ao que o Borges velho retruca: “–Se esta
manhã e este encontro são sonhos, cada um dos dois tem que imaginar que o
sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente
obrigação, enquanto isso, é aceitar o sonho, como temos aceitado o universo e
termos sido gerados e ver com os olhos e respirar.”
Pois se esses dois grandes escritores (dentre
muitos que tiveram essa consoladora ideia) podem encontrar sua mãe e até a si
mesmo, então este pobre cronista de província também tem o direito de sonhar um
dia encontrar seu pobre pai sapateiro, que deve continuar a sonhar com seus
entes queridos que por aqui ficaram e nunca o esquecemos.
texto maravilhoso. referências mil. feliz por lê-lo
ResponderExcluirGostei. Pedro é um mestre lapidador da palavra.
ResponderExcluirExcelente. Me fez lembrar meu pai!
ResponderExcluirParabéns caro Pedro.
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