domingo, 8 de maio de 2022

"Muito Antes, Depois...", de Pedro Salgueiro para O POVO


Eu era bem jovem quando perdi meu pai, cursava a segunda série do segundo grau e fazia um ano e meio que morava longe da família, pois em minha cidade só havia o primeiro grau: foi um choque terrível, cheguei até a pensar em largar tudo e voltar para a pequena cidade natal, porém resisti à dor e às dificuldades (não sem a ajuda de muitos), então criei uma defesa na forma do “pensamento mágico” de que um dia encontraria meu pai por acaso em algum recanto do mundo... E essa ingênua e útil ideia foi sobrevivendo ao tempo, de forma que estou às vésperas de completar a idade dele quando se foi e permaneço de vez em quando vislumbrando seu perfil na multidão de qualquer cidade onde esteja.

Muitos anos depois, lendo o belo livro Aqui nos encontramos, do inglês John Berger, percebi que não era o único a imaginar essas fugas úteis, no romance o autor inicia descrevendo: “No centro de uma praça, em Lisboa, existe uma árvore chamada cipreste lusitano. (...) Seus galhos, em vez de apontar para o alto, para o céu, foram treinados a crescer para fora, horizontalmente, de modo que formam um gigantesco, impenetrável e baixíssimo guarda-chuva com um diâmetro de vinte metros.” Embaixo dessa estranha árvore havia um também estranho poema: “Eu sou um cabo da tua enxada, o portão da tua casa, a madeira do teu berço, a madeira do teu caixão...”. E continua a descrever a praça e seus p(r)assantes, até se deparar com uma velhinha, que – do nada – pega em seu braço: “Abruptamente, (...) ela se levantou, virou-se e, usando o guarda-chuva como bengala, veio em minha direção. Reconheci seu andar. Muito antes de poder ver-lhe o rosto. Era o andar de alguém já aguardando, com impaciência, chegar e sentar-se. Era minha mãe.” Depois de algumas divagações do narrador, ela lhe fala: “Há alguma coisa, John, de que você não deveria se esquecer – você se esquece de coisas demais. Aquilo que você deveria saber é o seguinte: os mortos não ficam onde estão enterrados”.

No seu conto “O outro”, da coletânea O Livro de Areia (1975), o argentino Jorge Luís Borges encontra, também numa praça, a si mesmo, seu duplo, que assovia calmamente e puxa conversa com o narrador/personagem estupefato: “– Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. O estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha.”, ao que o Borges velho retruca: “–Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um dos dois tem que imaginar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente obrigação, enquanto isso, é aceitar o sonho, como temos aceitado o universo e termos sido gerados e ver com os olhos e respirar.”

Pois se esses dois grandes escritores (dentre muitos que tiveram essa consoladora ideia) podem encontrar sua mãe e até a si mesmo, então este pobre cronista de província também tem o direito de sonhar um dia encontrar seu pobre pai sapateiro, que deve continuar a sonhar com seus entes queridos que por aqui ficaram e nunca o esquecemos.




 

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