quinta-feira, 24 de março de 2022

"Salmos para Orquestrar Silêncios", lançamento de Bruno Paulino


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Ora, (Direis) Ouvir Silêncios!

 

Veni Creator Spiritus.

Essa invocação ao Espírito criador, que abre os Salmos para Orquestrar Silêncios de Bruno Paulino, é um hino ainda hoje utilizado em celebrações litúrgicas das mais diversas ocasiões, inclusive na solene coroação de reis. Os salmos bíblicos, cânticos ou poemas de louvor, em sua maioria, são atribuídos ao rei Davi (o “amado”, um dos primeiros voyeurs do Antigo Testamento), e têm diversas finalidades, como afastar as tristezas, ajudar a dormir, melhorar a relação com a pessoa amada, proteger de maus espíritos, curar doenças etc.

Creio que a poética de Paulino, por uma questão essencial indescritível e experiencial do próprio autor, o conduz pelo caminho do sagrado, que, convenhamos, nem sempre é um trilhar seguro: “meu viver é trágico/igual história grega”. Referimo-nos à experiência de um poder, uma força sobrenatural que habita algum ser, seja, no caso, o poeta ou a sua obra. Lembremos Florbela: “Ser poeta é ser mais alto, é ser maior/ Do que os homens! Morder como quem beija!/ É ser mendigo e dar como quem seja/ Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!/ É ter de mil desejos o esplendor/ E não saber sequer que se deseja!/ É ter cá dentro um astro que flameja,/ É ter garras e asas de condor!”

Esse poder de encantar o mundo, característico da experiência do sagrado, é aqui operado pelas águas purificadoras da poesia que “hoje transformam palavras num misto entre o óbvio e o nunca visto”, no dizer de Leminski, convidado pelo autor para estender o seu cajado e abrir as páginas de nossa travessia nessas águas polifônicas – do rio Quixeramobim? – de um mundo apenas à poesia permitido, onde “desanoitece para anoitecer”.

Essa poesia aqui se apresenta concisa, coloquial, telúrica, livre de metrificações, de rimas e/ou de modelos rígidos, a respirar, como encontramos em um salmo que diz não temer “o pavor da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que se move sorrateira nas trevas, nem a praga que devasta ao meio-dia.”

A poesia, quem lê compreende, tem um poder mágico, intocado e intraduzível, o que nos faz crer na sua origem divinal. Repito: origem! Pois, para mim, uma ovelha perdida, a poesia é divina e por esse motivo não é possível ao ser humano alcançá-la em sua plenitude, muito menos encarcerá-la em papel. Daí nos depararmos com ela nos olhares, nos sorrisos de crianças, no lábio sedento de um beijo, no horizonte encarnado ao final da tarde, no farfalhar das folhas, na areia sertaneja que prateia à noite de luar. Porém, o poema, esse não, é uma espécie de “anjo caído”, desterrado neste mundo, seduzindo homens e/ou mulheres a seu serviço, se reproduzindo e explodindo em prismas líquidos tintos de cores do céu. E é ali, no topo do poema, apenas reflexo poético de Deus, na palavra buscada – e raramente precisa –, o sacrifício do poeta (ou profeta?). Sim, a poesia é divina, mas o poema é profano, mesmo quando caiado “na beleza imorredoura de um sonho”.

Folheando o livro novo, como acarinhando um recém-nascido, percebemos que não apenas explicitamente no título, mas no projeto gráfico e na identidade desses livros de poesia – a autor comete obras em outros gêneros –, tanto no Ofertório dos pássaros (2019), assim como em Breviário (2020) e neste Salmos... (2021), todos pelas Edições Lua Azul, traz em suas páginas uma breve excursão ao mundo cristão, ornado em ilustrações, imagens e tipografias antigas, no seu léxico, entre outras expressões latinas. Não é coincidência, e, sim, um projeto literário. Esses títulos compõem a Trilogia de Celebração do Divino Mistério, conforme ele denomina, o que para ele é a sua “busca pelo absoluto no cotidiano”.

O livro é composto de duas partes: “Epístolas da Solidão” e “Sacrário da Memória”. Nas páginas que anunciam essa partilha, encontramos a imagem de um homem, talvez um velho (um eremita em busca do seu eu interior?), sentado à sombra de uma árvore e diante de um horizonte amplo, “expectando”, ou seja, em permanente, humilde e paciente expectativa e espera. À espera de quê? Do alto, duas aves se aproximam, e nos parecem trazer o esperado alimento. Simbolicamente, alimento para o espírito: “Vinde, Espírito criador,/ visitai as Vossas almas,/ enchei com a graça do alto/ os corações que criastes. [...] Iluminai os sentidos,/ infundi o amor nos corações,/fortalecei os nossos corpos/ fortalecei-os [de virtude] para sempre.”

A revelação se inaugura com “estudo”, no qual afirma ser a solidão “um bicho sem metáforas”, entretanto, concluindo: “da solidão/ não sei dizer/ sem metáforas”.

A solidão, para os iluminados, é uma companheira cobiçada e talvez a mais fiel. É por meio dela a reconciliação com a sua essência, com a sua motivação de existir. É nela, que através dos seus ritos – inclusive os literários e artísticos de forma geral –, se manifesta a sua verdade, um manto de mistério, e se distorce todos os conceitos mundanos, inclusive o da duração das coisas: “faz tempo/ era menino/ e a vida/ sonhava/ sem tempo/ lá no terreiro” ou “pra onde vamos/é sempre ontem”.

Mas se engana quem pensa que o autor escreve com o espírito em cela, numa aura de santidade e transcendência, refreando sua condição de inquilino terrestre. Esse mesmo Paulino, devoto de Nossa Senhora dos Poetas – me perdoe, são Francisco de Assis –, que nunca aprendeu a usar gravata, gosta de cerveja e de ouvir música antiga, que lê Manuel Bandeira, assiste a filmes em preto e branco, não escreve sonetos nem sabe dançar, embebido na condição ambígua do “ajoelhou tem que rezar”, “feito passarim”, dá uma escapadela ao adro e “lá das nuvens/ delira/ e/ desloca/ a gravidade/ da/ terra/ que flutua/ igual teu corpo/ nos meus braços”.

Da mesma forma, em “espiritismo” – que curioso... –, encontramos esse ser em conflito, misturando as dimensões do sagrado e profano, imerso numa estranha geografia que nós só conhecemos – e experenciamos, em um delírio quase epifânico – de muito perto: “tua lembrança é como transe/ pássaro que voa sem sentido/ num céu de estranha geografia// tua lembrança é meu martírio/ uma cruz que sempre carreguei// meu carma/ desde o dia que te vi/ pra nunca mais morrer”.

Cauteloso – e romântico, diga-se –, percorre os bulevares de Quixeramobim, a Andaluzia de seu peito, e assegura: “o amor é medicamento eficaz pra tudo que é dor”. Contudo, numa antítese própria – do bálsamo à punição – de quem ama, desama e é novamente arrebatado de si, e clama: “todo amor é martírio”. E assim, como quem carrega “um punhal sempre à espreita/de um destino obstinado”, afirma, endoidecido de paixão como uma Salomé: “só acredito/ num amor/ que decepa/ coração/ e/ cabeça”.

Não estendendo-me mais, pois a obra, por ser calcada em poesia, só se conhece quando a enxerga pelos olhos da alma – ou se ouve os silêncios por ela orquestrados –, não poderia deixar de falar desse personagem constante em Paulino, a sua Terra Prometida, onde trilha seu ministério literário: Quixeramobim! O autor é profundamente arraigado e encantado pelo seu torrão, a sua aldeia de Tolstói, berço de Antônio Conselheiro, Antônio Bezerra, Ana Montenegro, Ciro Saraiva, Fausto Nilo, entre outros, a quem dedica um laboroso trabalho de promoção e de produção literária, não colocando-a no mapa, como costumam dizer, mas tirando-a apenas do mapa e dedicando-lhe versos, elevando-a à condição não de cidade, mas de “mundo”, o seu mundo:  “quixeramobim é o mundo/ na estrada: paisagem, pedra,/ cemitério, silêncio e soluço// quixeramobim é o mundo/ riachos, meninos descalços/ e o azul faz igreja no quintal// quixeramobim é o mundo/ de místico passado, passeio/ num caminho/ que eu lembro passei”.

Contudo, não se espantem se, de repente, Paulino mandar tudo pelos ares e, numa selvageria de coração maior do que a de Belchior, berrar em tônica brega-canção: “Esta cidade é uma selva sem você!”

“Pax et Bonum!” (“Paz e Bem”) é o que desejo a mais esse, certamente, exitosa obra.

 

Raymundo Netto

Leitor de Bruno Paulino


Para adquirir o livro, o contato do autor: 

bruno_enxadrista@hotmail.com 






 

2 comentários:

  1. pois se não belos os escritose a Bruno Paulino, ficaram com certeza com as palavras quase mágicas de Raymundo Netto.

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  2. Obrigado pela gentileza a ambos, amiga Lucirene.

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