segunda-feira, 14 de março de 2022

"Mortal Combate", de Raymundo Netto para O POVO


Uma manhã iluminada e brilhante escorria pela varanda fresca do apartamento quando Davina sonoramente deu por certa a condição do marido: “Você é um idiota! I-di-o-ta!” Dito isso, lançou-se porta afora, a bolsa ainda pendente, irritada e atrasada para o trabalho.

Elias, que mal havia acordado, ficaria por muito ainda ali, imóvel como uma estátua de Rodin, digerindo o adjetivo a ele empregado. Pensava, e não sabia por que se dava ao trabalho, sobre a última vez que ouvira dirigido a ele tamanho agravo. Nem lembrava!

Na verdade, Elias era homem público. Sabia-se carismático, cientista reconhecido e premiado pela sua intelectualidade e vasto conhecimento, um líder, um homem da paz. “Tal homem”, ruminava em sua filosofia mais vã, típica dos solitários, “só poderia encontrar um lugar no mundo onde poderia ser menosprezado e humilhado. Esse lugar seria, paradoxalmente, na sua casa, no seio familiar e pela própria mulher.”

A frase, durante os instantes do café também mal digerido, foi construída, descontruída e reformulada num exercício digno de quem faz do pensamento o seu próprio chão. Porém, no entardecer do natural percurso, algumas dúvidas obscurecem e ele saiu de casa se sentindo pequeno, terrivelmente pequeno e nulo, uma pulga, ou o filho de uma, de maneira que teve que pular degrau por degrau da escada e, não conseguindo abrir a porta do carro, determinou-se a ir a pé à Universidade que, embora não fosse distante dali, naquela situação, só chegaria, com muito esforço e risco, quase ao final da manhã.

Chegando, a recepcionista o saudou, estranhando o seu silêncio, enquanto ele passava por baixo da porta. A sua secretária, vendo-o tão diminuto, o pegou, o colocou no colo e, com o indicador, pôs-se a fazer carinho naquilo que parecia ser as suas costas. Meio sem jeito, Elias traçou um longo caminho de conjecturas, quase mitológicas, sobre a existência humana até chegar à injúria disparada contra ele. Ela mostrou-se solidária e até reprovou a insensibilidade da esposa: “Será que ela não vê? O senhor é, é... um gênio!”

Daqui a pouco, algumas outras colegas, curiosas, comoveram-se com a dor daquele serzinho e tomaram coro num sarau elogioso de fazer corar o Barba Azul. Com isso, logo, logo, Elias teve que sair – a contragosto – do colo da colega, pois crescia a olhos vistos a cada depoimento e relatos generosos sobre as suas inúmeras qualidades. Assim, com pouco, teve que trabalhar do lado de fora do prédio, pois, agigantado como estava, não cabia mais nele. Suas aulas, recebidas sempre com admiração e aplausos efusivos, foram ministradas naquela tarde ao ar livre, no anfiteatro da Universidade.

Ao final do expediente, Elias, como remoçado, cheio de ideias e planos para o futuro, despediu-se dos colegas, agradecendo a todos pela empatia e humanidade, e pôs-se para casa, assoviando e medindo os passos para não causar estragos no trânsito da avenida.

Ao chegar à quadra de seu edifício, foi surpreendido com uma pedra lançada em sua testa e desabou no chão. Antes de desmaiar, porém, viu Davina, com uma funda a rodopiar em sua mão, gritando: “Pensa que tenho medo? Tamanho não é documento, não!”

Então, novamente reduzido, desacordado e no estado ideal de inconsciência, Davina o recolheu da calçada, colocando-o na palma de sua mão e, após carinhoso beijo e juras de amor, o deitou na cama do casal, atraiçoado berço da felicidade eterna, enquanto que, para Elias, o que lhe restava era sonhar com o consolo do regaço quente da secretária.




 

6 comentários:

  1. Raymundo o que uma só palavra pode fazer com a auto estima, não é? grande texto, você traz de cada vez incógnitas, para reflexão. um abraço

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    1. Lucirene, a palavra, assim como uma pedra lançada, não tem volta. Ambas podem causar feridas profundas de difícil (ou impossível)cura. E isso acontecendo em casa é pior ainda, ofensivo e traumático.

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  2. Bom dia, Raymundo!

    Mais uma crônica que arrebata.

    Parabéns!

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  3. Malvinier, minha querida, grata pela sua leitura atenta e gentil retorno.

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  4. Raymundo Netto, meu tempo tem sido tão corrido, você nem imagina. Mas neste começo de noite consegui parar para ler sua crônica, uma sábia crônica, diga-se de passagem. Parabéns! Grande abraço.

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  5. Sem problema, Zélia. Está quase todo mundo nesse "corre", parece que o mundo vai acabar, e sempre temos a impressão de que não poderia ser diferente. O ser humano é incrível, mesmo quando diante de uma guerra, arranja outra ou mete um tiro no pé. Obrigado pela sua leitura. Abração.

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