segunda-feira, 24 de setembro de 2018

"Ciúmes", de Raymundo Netto para O POVO



“Eu também amo a sua mulher!”, afirmou Padilha, o seu melhor amigo, numa sinceridade brutal, quase desumana. Honório, mais ébrio do que uma adega, duvidou dos próprios ouvidos, recusando a crer naquela despropositada revelação. Silenciado, largou o copo no balcão e partiu para casa, encontrando a esposa a esperá-lo na sala, acolhendo-o como uma Pietá. Jogando a cabeça tonta em seu regaço, compartilhou o acontecido. “Que cretino... e na minha cara, Madalena! Ele está pensando que sou o quê?” Ela sussurrou ao seu ouvido: “Calma, paizinho. O que importa é quem eu amo: você. Só você.” Então, sovado por beijos da amada, foi deitar. Porém, Honório teve pesadelos: “Madalena não... Ela não! É minha. Só!”. Pela manhã, ainda doía-lhe o juízo. “Como pôde, minha filha? Nós éramos tão amigos. Ele vivia aqui em casa. Olha no que deu.” Ela nada dizia. Pegou-lhe a mão e a beijou, suave e apaixonada. “Esqueceria”. Mas ele não se esqueceu. Pelo contrário. Daquele dia em diante, entranhado de ciúmes, determinou-se a perseguir o seu rival, que, de fato, nem se esforçava para sê-lo.
Nos bares e no trabalho, Honório encontrava amigos em comum e não perdia a oportunidade de contar a desfaçatez “daquele sujeito”. Eles diziam não acreditar e se mostravam solidários: “Sentir uma pontinha disso ou daquilo vá lá, mas confessar assim, na cara do marido, é uma insanidade.” O certo é que, depois, cada qual com seu motivo, vez ou outra lhe segredava: “Vi a Madalena hoje. Estava com o safado do Padilha.” Ele enlouquecia e ligava dali mesmo para tomar satisfações com a esposa, à sombra de um meio-sorriso do alcaguete. Ela, a princípio, calmamente, dizia ter sido um acaso. “Ele também estava lá e mal nos cumprimentamos. Ele nos respeita, amor.” Honório, ferido, não se convencia: “Não quero saber de você em tititi com esse ordinário. Com qualquer um, mas com ele nunca, ouviu bem?” Isso aconteceria outras vezes. Assim, quando a mulher saía de casa e não lhe dizia o destino, ligava anonimamente para a secretária dele e perguntava: “O Padilha está? Tem certeza? Vai passar a tarde aí?” Mas se ele ali não estivesse, era batata: “Foi ao encontro dela... cachorro!” Começou a exigir que a mulher só saísse após lhe contar e bem contado aonde iria. Ela, já bastante incomodada, mas sem querer piorar a situação, dizia, e ele logo questionava: “E ele vai estar lá? Tem chance de ele estar lá?”
Também na cama, quando não se saía bem, explodia: “É o Padilha. Deve ser praga. Quando penso que aquelezinho pode estar agora se imaginando com você, tocando em você, isso me acaba, minha filha... eu não presto!”
Nas ocasiões sociais, dominado pela sua neurose galopante, se Honório o visse chegar, segurava, a ponto de machucar, a mão de Madalena. Chegasse perto, ele a arrastava. E se ele ousasse apenas olhar para ela, de imediato, ouvia: “O que foi? Não vê que esta senhora está acompanhada?”
Madalena não cabia mais de tanta vergonha e humilhações. Não queria mais sair de casa, não ia às compras, deixou de trabalhar, trancava-se no quarto, desgostosa até de olhar pela janela, pois decerto ouviria: “É ele que está aí fora? Se eu o vir, o quebro de pau!”
Após meses de angústia, enfraquecida, definhou a olhos vistos e, sem ter nem para quê, morreu!
No velório, mais do que tristeza, percebia-se uma ansiedade do viúvo. Estranhamente, perguntava a todos o tempo inteiro: “E o Padilha, ele não vem? Ele já chegou? Cadê o Padilha?” Adiou por horas a missa e o enterro da mulher na esperança da iminente e aguardada chegada do suposto amante que, por fim, não veio.
Do cemitério mesmo, sem dar ouvidos ao conselho dos amigos, correu à casa de Padilha. Bateu-lhe à porta desesperadamente. Quando ele o atendeu, surpreso, ouviu de Honório: “Padilha, você está bem? Não está doente, sentindo-se mal?” “Não... eu estou ótimo, claro. Por quê?” “Por quê? Cara, e que diabo de amor é esse seu, hein?”
E caiu num pranto inconsolável, esparramando-se em soluços no ombro do cúmplice amoroso.


2 comentários:

  1. Quantas vezes nós criamos algo e nos alimentamos, nos envenenando... Formidável! Sempre amei contos. Parabéns.

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    1. Obrigado, Fátima, pela leitura. Sim, ciúme envenena e mata. Tanta coisa poderia ser resolvida com mais amor... mas amor de verdade é para poucos.

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