domingo, 7 de outubro de 2018

"O Infiel", de Raymundo Netto para O POVO



Era noiva. Uma eterna noiva, poderia se dizer, e mesmo assim não causaria espanto. Porém, na sua idade e com a visível opulência de seus atrativos, anunciar a mais intransponível castidade de moça jamais tocada e bulida, impressionava.
Cândida trabalhava como doméstica desde adolescente, quando conheceu e enamorou-se perdidamente por Jacobeu, um jovem trabalhador, também de família humilde, evangélico fervoroso, mais assíduo à igreja do que cão sem dono.
No começo, conversavam a valer, sendo natural a intimidade vir com o tempo. Entretanto, o casal já cumpria uma quase eternidade, e ela estranhava a dedicação obsessiva do rapaz em permanecê-la “intacta e pura”. Justificava a religião: “Só me caso com mulher virgem, direita. Deus não quer assim?” Daí, ela se culpava e se envergonhava pela indignidade de seus desejos. E estimava ainda mais os cuidados daquele homem que, na promessa de matrimônio, resistia aos seus próprios ímpetos. O certo é que até esse jurado casamento era duro de chegar.
Às noites, muitas delas, ele a deixava em casa, após um amasso frouxo e ligeiro. Ela reclamava: “Queria mais...” Ele alertava: “Cuidado. Não se deixe dominar pela tentação da carne. Só me caso com mulher virgem!”
Na pracinha, porém, os rapazes a assediavam. Flertavam, acusavam as coxas e as nádegas salientes, enviavam mensagens pelo celular, chamavam-na de “carinha de anjo”. As amigas percebiam a popularidade de Cândida. Relatavam as suas experiências, as mais picantes, de corar a uma cafetina, e, em troca, cobravam-lhe intimidades. Inocente, respondia: “Não sei. Só namorei com ele...” Frustradas, sentenciavam: “Está perdendo tempo. Não sabe o que é bom!”
Outra noite, voltando com o namorado de uma confraternização, ela lançou: “Queria conhecer um motel!” O namorado empalideceu: “A casa do pecado!” “Do amor, meu bem, do amor. Tudo depende de como a gente vê e do que a gente faz. Vamos mais eu, só uma vez...” Pego de surpresa, Jacobeu entrou no primeiro que viu. Animada, ela pegou a chave, abriu a porta, apertou todos os botões que encontrou pela frente e anunciou o banho “para ficar bem gostosa”. De fato, nem precisava se esforçar, apareceu na penumbra do quarto frio, enrolada em toalha de mãos, escandalosamente sensual, encontrando-o ainda vestido, apático e assistindo à TV. Ia deitar-se ao seu lado quando ele, visivelmente irritado, a interpelou: “Satisfeita agora? Sabe, você está ouvindo demais as suas amigas. Elas não têm nada na cabeça e dá nisso. Pergunta se elas esperam se casar com homem sério. Pergunta!”
Contando, ninguém acreditava, nem a própria Cândida. Assim, no dia seguinte, desabafou com as amigas. De cara, alertaram: “Sua boba, ele só pode estar lhe traindo. Deve ter outra mulher, uma dessas sem-vergonhas que fazem de um tudo... Assim é bom, né?”
Chegou o Carnaval. Ela queria ir ao baile na pracinha. Ele não poderia. Lamentava: “Minha mãe precisa de mim, meu bem. E a mãe é sagrada. Sagrada!”
Com a pulga atrás da orelha e a chaleira apitando faz tempo deu uma de doida: desligou o telefone e, mais tarde, foi de surpresa à casa de Jacobeu. Atendeu a sacra mãe: “Saiu desde ontem, pensei que estava com você.” Indignada e certa da traição do noivo, resolveu ir à folia e a forra, Deus a perdoasse: “Se ele pode, porque eu não?” Era o fim. Entretanto, qual não foi a sua surpresa ao ver o Jacobeu ali, fantasiado, não como pierrô, mas à colombina, embaixo de plumas e glitter colorido, correndo em frenesi atrás de uma serpentina cor de rosa.



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