Veio-lhe
a carta. Poderia ser qualquer uma, mas não, esta era cansada. Exaurida de
lágrimas, qualquer resto delas, de fadiga ou de tédio, palavras em desalinho,
opressas a batidas quase surdas de um coração ferido.
Ele,
nem mesmo para si guardava a dúvida: de nada sabia do amor. Numa arrazoada
assertiva o teria como um horizonte distante e inalcançável, como mentira,
eternamente paralelo à vida, pelo menos a dele.
Não
por isso negasse dias ter pela remetente sacrificado a palavra inda quente
entre os dentes, nem sabia o porquê. Seria de mais grado a ambos deixar-se
vomitar o “eu te amo”. Mas qual. Fitava-lhe os olhos de âmbar e o sorriso de
menina. Guardava na polpa dos dedos aquele desejo, quase em súplices
joelhos, em forma de impressões e ardor da pele dourada. Buscava no lóbulo da
orelha sob o cabelos furiosos o corpo que se expandia num abraço de acolhê-lo
todo e inteiro – carne, alma e algo mais indescrito – em noites intermináveis
de sempre ter um capítulo de fim. Agarrava-se aos cabelos como a tomá-la para
si, para dentro de si, beijando-lhes os olhos para não cair de suas lembranças.
No
escuro, sua voz ainda corria a curva dos ouvidos: “Eu tentei... ‘Morri no ano
passado, mas nesse ano eu não morro’. Talvez eu tenha entendido ter chegado a
hora de não querer mais entender. Seja feliz e adeus.”
“Adeus”,
repetia, desbastando em retalhos as memórias que lhe vinham uma a uma,
atravessando o peito e saltando do trampolim sobre as águas de malogrados esquecimentos.
Noutros
dias, ao beijar outra mulher, sua boca estranhou o incômodo da boca distante.
Seus dedos, como se perdidos no chão, procuravam encontrar no corpo alheio as
mesmas e aquelas impressões e ardores que repousavam à pele dourada.
Entretanto, nada encontraram, volvendo-se a noite em escura e desértica. A sua
ausência materializou-se e desabou em chuva, a revelar no espelho que o seu
pior castigo nem era ser ele mesmo, mas viver sem o perigo daquele abraço.
Do
vizinho, uma radiola arranhava em long-play
antigo: “entre os defeitos que tenho um é gostar de você.”
“Conte-me
uma história...”, indicava no silêncio delicado, enquanto na fúria dos azuis do
luar ela despedia-se num abraço calcado quase em morte, em solidariedade de
vazios e de saudades, num frouxo rompante:
“Eu
te amei, eu te amo, não te amarei nunca mais!”
Ao contrário das demais crônicas, dramas cômicos do cotidiano, essa Carta Cansada é poesia em forma de crônica.
ResponderExcluir