sábado, 18 de junho de 2016

"Lama versus Areia: histórias compartilhadas", de Raymundo Netto para O POVO


Em uma época em que o lamaçal no país toma-nos às ventas, provavelmente por não termos outras questões mais prioritárias e emergentes a resolver, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE), por meio de sua Comissão de Liberdade Religiosa, pronunciou-se, assim como também a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará apresentou Moção de Repúdio, contra a apresentação da peça “Histórias Compartilhadas: Ou dos corpos que não se bastam”, realizada durante o seminário “Conversas empoderadas e despudoradas sobre gênero sexualidade e subjetividades”, que teve sede no auditório da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A imagem de uma fotografia postada em redes sociais em que o ator Ari Areia vertia gotas de sangue sobre um pequeno crucifixo, causou a cólera no coração imaculado de diversas pessoas que, sem assistirem à peça nem a contextualizarem no evento em que se discutia questões de gênero e no qual se falava exatamente sobre a intolerância e a discriminação aos transexuais, passaram a agredi-lo, ofendê-lo e até mesmo ameaçá-lo de morte. Alguns chegaram em sua sandice e fantasia dogmática a denunciá-lo à Santa Inquisição e comprar a sua passagem antecipada a um dos dez fossos do Hades dantesco.
A OAB, incompreensivelmente baseada apenas na visão estática da fotografia e no relato preconceituoso e intolerante de pessoas que também não têm noção do que se tratava a peça, chega a sugerir em seu pronunciamento que o ator poderia ter usado “outros personagens históricos” ao invés do crucifixo cristão (em entrevista à rádio O POVO/CBN, o representante de tal comissão, também preconceituosamente perguntava: “por que não o John Lennon?”). Faz-me pensar se haveria essa reação se ao invés do crucifixo estivesse ali o Buda, Maomé, Iansã ou o Preto Velho. Continuando, ela afirma solene: o “Cristo crucificado que representa para milhões de brasileiros vida, esperança, paz, amor”. Perguntamo-nos: as agressões e ameaças de morte que assistimos por parte dessa legião virtuosa e enfurecida representam mesmo vida, paz e amor?
O pronunciamento da OAB, aprovado por pessoas que por unanimidade não assistiram à peça (conforme afirmação do presidente da Comissão), ainda determina que existem limites para a liberdade de expressão. Ora, quem define esses limites? Delegamos esse poder a quem?
Agora entra em cena o Ministério Público, pede esclarecimentos, entre os quais: de quem partiu a ideia; se a direção se preocupou com eventuais afrontas à comunidade cristã; quem são os produtores e quais os contatos deles; quem autorizou a exibição do espetáculo; se possui filmagens; se havia autorização para ser exibida na UFC etc., numa desfaçado ensaio censurador.
Ouve o Ministério Público essa solicitação da OAB, no intuito de – soaria até engraçado isso – “restaurar o império da lei, da paz e da tolerância”. Paz e tolerância de quem? Daqueles que confortavelmente não estão nem aí para a violência diária e histórica sofrida por gays, lésbicas, trans e travestis, seres humanos que, segundo alguns deles, na sua autoridade religiosa suprema e pacífica, nem são “gente”, como infelizmente já tive o desprazer de ouvir? Justamente quando nessa semana foram eles os personagens-vítimas do pior massacre a tiros nos EUA?
Curioso é que o Brasil foi um dos países a gritar por LIBERDADE quando da execução, por muçulmanos TAMBÉM coléricos e intolerantes, da equipe do jornal francês “Charlie Hebdo”. Hoje, somos nós a querermos calar essa liberdade, quando em pauta deveria estar a maldade, a ignorância e a violência sofrida por aqueles a quem esses caiados fundamentalistazinhos desprezam e que se possível executariam, não fosse a falta de coragem. Graças a Deus!
Ora, OAB, MP e AL, a maior afronta contra o Cristo na cruz são todas as formas de racismo, preconceito e discriminação, pois “tudo que fizermos com o menor de nossos irmãos, faremos a Ele” (Mateus 25). 
E afinal, quem de nós está oferecendo a outra face, irmão? 




6 comentários:

  1. Excelente crônica, Raymundo Netto. Esse episódio da moção de repúdio contra uma peça de teatro é sinal de como a falta de vontade de conhecer os produtos culturais, a má-fé em julgá-los sem tê-los visto ou ouvido em sua integridade e a prepotência de coibir o espírito criativo dos artistas colaboram para a formação de um cenário em que a ausência de repertório cultural sólido, a ausência de leitura da palavra e da leitura do mundo (para usar expressões do grande pedagogo Paulo Freire) e a presunção de verdades dogmáticas oriundas de grupos religiosos que se pretendem hegemônicos dão o tom da desinformação e da estupidez.

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  2. Suspeito que a polêmica toda tenha sido motivada não em defesa (que nem precisa) daquele que recebeu o sangue derramado (o Jesus crucificado), mas em ataque àquele que o derramou (um homossexual). Uma reação homofóbica com máscara legal de um Estado nada laico.

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  4. Seu texto não é que seja apenas bom. É necessário. A Inquisição voltou! Junte fanatismo e ignorância que se cria uma fogueira mais rápido do que com lenha e fósforo.

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  5. E como sei disso, Carol. Obrigado pela leitura e compartilhamento.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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