sábado, 25 de julho de 2015

"Literatura Cearense? Manda vir do Piauí!", de Raymundo Netto para O POVO


Criança, me cantavam sobre a morte do boi, mandando logo a maninha buscar outro lá do Piauí. Nunca entendi por que buscar o bicho num lugar tão distante – sempre me deram a entender ser o Piauí do outro lado do mundo – mas veja como esse mundo dá voltas...
Enquanto aqui, no obscuro arquipélago federal das letras universitárias, a literatura cearense continua em repetida toada de grilo “Tem, mas tá faltando”, conseguindo estranha adesão da outrora resistente congênere estadual, que colocou a disciplina obrigatória como optativa – PÂNICO! –, do Piauí me chega um boi, ou quase isso, em forma de manchete a invejar: “Alunos da Universidade Estadual do Piauí, em Parnaíba, lançarão livro sobre Literatura Piauiense”. Hein? Estranhei. E existe literatura piauiense? Pois por aqui uma série de desorientados em crise de identidade insistem, até quase convencer, que não existe uma cearense, o que implica não existir também uma brasileira, ciente de que o todo só existe por suas partes.
Mas deixando esse tédio de cá de lado, o certo é que os alunos do curso de letras do Piauí decidiram organizar e publicar um livro: “uma produção acadêmica para além da síntese biobibliográfica, mirando na crítica literária e formando um panorama que abarca boa parte do espectro de nossa literatura”. E dizem mais: “tentamos resgatar a riqueza literária piauiense que nem sempre é valorizada. [...] Através da poesia e da prosa, de uma linguagem própria, do jeito simples dos personagens, do amor, da saudade, do canto da natureza local e de seu espaço geográfico, vemos surgir a literatura piauiense e alma de um povo.”
Penso que devem ter lido o francês Marc Augé, aquele que afirma: “o imaginário e a memória coletivos consti­tuem uma totalidade simbólica em referência a qual um grupo se define e por meio da qual ele se reproduz de um modo imaginário ao longo das gerações”. Devem daí compreender o seu berço “enquanto um sistema simbólico coletivamente compartilhado”, na certeza de que quando brigamos pela nossa identidade, exigimos o nosso direito de sermos diferentes!
Então, vejo com alegria nas redes sociais, ou por meio de amigos que escaparam do calabouço escuro acadêmico, gritarem em nome da literatura baiana, paraibana, pernambucana, brasiliense, mineira, piauiense... e a cearense.

Pois é, mói, enquanto o boi não chega, ficamos por aqui, olhando de longe para a torre do Benfica, cercada por espinhos e dragões, iluminada apenas por “aliterações” e alguns alunos mais ousados que dizem querer conhecer esse mistério indesvendável que é a literatura cearense, bela e adormecida, filha do príncipe morto, que deveria ser ensinada e fomentada nas carteiras de sala de aula, mas não são. Passam sânzios, batistas, anos e anos e onde se espera encontrar uma LUZ, só nos resta o silêncio ressentido das TREVAS! 

2 comentários:

  1. Vemos esta questão pela janela, Raymundo. Tua crônica é bastante lúcida. Precisamos nos desencastelar, urgentemente. Do contrário, vamos continuar a ler e a louvar apenas o que surge no horizonte do famoso eixo do sudeste. Vôte!

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  2. Sim, severamente. rsrsr Cada voz tem a sua força e unidos podemos mais. Nem preocupo-me com a literatura contemporânea, mas é inaceitável que a história literária não seja devidamente registrada e pesquisada.

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