Quando
digo por aí que no Ceará temos serras altas, cobertas de Mata Atlântica com
suas típicas bromélias, orquídeas e samambaias, relvas de marias-sem-vergonha,
neblinas densas pela manhã, fios d’água e clima frio, as pessoas se admiram, às
vezes até descrentes. Mesmo eu me maravilhei esses dias, na verdejante,
agradável, calma e fresca serra de Guaramiranga. Não dava para acreditar que
era o mesmo Ceará das praias e coqueiros, ou o dos sertões de caatinga. Parecia
um sonho.
A Rachel
de Queiroz dizia que o nome Guaramiranga, que significa pássaro vermelho, veio
de um sítio fundado por seu bisavô, e ainda no século 19 acabou batizando o
vilarejo, quando tinha só duas ruas que se cruzavam: uma da porteira do sítio
até a igrejinha de Lourdes, no alto; e outra, do Monte-flor para o Macapá. Ali
ela passava suas férias de menina, numa casa alugada pelo pai no alto da
Matriz. Rachel contava que uns jornalistas, professores, artistas, subiam de
Fortaleza e se reuniam com a inteligência local, para programar peças de
teatro, conferências, recitais. No final do ano, todos se juntavam para montar
um “drama”, uma espécie de teatro de revista nascido dos rituais de colheita
dos antigos lavradores.
Moças
vestidas de deusas declamavam, bailavam, cantavam, exaltando o clima, as águas,
as flores e frutas, as riquezas do café e da cana-de-açúcar. A Rachel ainda se
lembrava de uma valsa tocada num desses dramas, chamada Princesinha dos
dólares: “Sou a cana jovial / do café a doce irmã...”
Aquela
serra pertencia a índios, só eles conseguiam viver num lugar tão inacessível;
ali habitavam os Canindé, quando chegaram os missionários, até que as terras
foram desbravadas por fazendeiros dos sertões vizinhos que ocupavam as partes
cada vez mais altas das encostas. Os índios, agora escravos, foram trabalhar
nas plantações e construíram algumas das casas senhoriais que ainda vemos por
lá. Com as grandes secas dos anos setecentos, sertanejos eram empurrados para a
serra em busca de água. Não tardou a surgir em torno de uma capela o povoado de
Conceição, que depois se tornou a freguesia de Nossa Senhora da Conceição. No
século 19 o lugar ficou rico, com as plantações de café e de cana-de-açúcar. E
veio o nome Guaramiranga.
Numa
caminhada pela serra, ali perto de Forquilha, eu avistava alguns pontinhos
vermelhos no meio da mata; eram frutos de café, talvez remanescentes dos tempos
dos grandes plantios cafeeiros. Tudo em Guaramiranga tinha relação com a
lavoura de cana e a de café que se espalhavam pelas encostas. Naqueles pomares,
roçados e canaviais os lavradores descansavam fazendo versos, cantorias. Nas
imensas cozinhas dos sítios as nativas ouviam e cantavam cantigas aprendidas
com senhoras portuguesas ou holandesas.
Dizem que
foi dessas cantigas de cozinha que nasceram os dramas lembrados pela Rachel.
Quando os trabalhadores festejavam a colheita, apresentavam seus poemas em
dramas e reisados. Primeiro entre si, depois para senhores e suas famílias, nos
faxinais dos sítios. Os senhores forneciam as roupas de cena, os cenários, cediam
os lampiões que iluminavam a faxina, convidavam o povo das redondezas, e davam
de graça a cachaça. Contam que no sítio Arábia se apresentavam noitadas de
dramas com mais de cinquenta e três números diferentes. Eles chamavam os
números de “operetas”, que eram diálogos cantados. Os sítios ficavam cheios de
gente em suas roupas domingueiras, comendo e bebendo, divertindo-se com
entusiasmo.
Algum
padre entendeu que aquele júbilo poderia animar as cerimônias da padroeira,
aumentando a arrecadação das quermesses, e incorporou a festividade às festas
de igreja. Assim foi que Guaramiranga criou seu espírito de artes, a partir de
dramas, de mestres do reisado, de músicos e poetas populares, das festas
religiosas, das rezadeiras com suas preces, dos balaieiros que fabricavam peças
minuciosas... Com o fim das atividades cafeeiras, os lavradores se foram
daquelas serras, e a festa de dramas passou a fazer parte do pequeno centro
urbano. Nos domingos à noite. Uma história bucólica, um passado alegre.
Como
Rachel, também tenho as minhas lembranças líricas de infância na serra. Mas era
a de Maranguape, onde meus pais alugavam um sítio para nossas férias. Minha
lembrança é apenas uma névoa, uma ou outra imagem sem história, pois eu era
muito pequenina, tinha apenas dois anos de idade: uma piscina imensa, águas
escuras cobertas de pinceladas de prata, a vegetação por trás, o vulto de uma
casa, um telhado vermelho...
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